segunda-feira, 12 de agosto de 2024

OS DESARÇONADOS

 


   Não é difícil sentir uma profunda identificação com “Os Desarçonados” (tradução de Diogo Paiva, Cutelo Edições, Maio de 2024), de Pascal Quignard (n. 1948), desde logo por se tratar de um desses livros inclassificáveis, impossível de arrumar segundo as convenções que tendem a reduzir o ofício da palavra a géneros. Aqui leva-se à letra a possibilidade que se apregoa, «rasgar um pouco o tecido» (p. 285), em cento e dois capítulos, em numeração romana, que, na verdade, são aforismos à maneira de Friedrich Nietzsche (1844 - 1900). Mas ao contrário do filósofo alemão, Quignard chama frequentemente à reflexão a pequena história, o mito, o anedotário universal enquanto exemplo a partir do qual se erige um pensamento comprometido com a investigação disso a que chamam natureza humana.
   Este livro impressiona, desde logo, pela extraordinária cultura do seu autor, pelos referentes que provêm de disciplinas diversas, incidindo especialmente numa tradição clássica que vai à origem tentando compreender a essência, recorrendo amiúde à decantação etimológica de conceitos que o tempo se encarregou de obnubilar. “Os Desarçonados” oferece-nos um imenso catálogo de desastres, de derrotas, de momentos de aniquilação e de extermínio que lançam sobre a bondade humana uma fundada desconfiança.
   Discípulo de Emmanuel Levinas (1906 – 1995), a quem se refere como «meu mestre» (p. 285), Quignard aproxima-se deste fazendo da ética um problema nuclear, mas distancia-se quando a relação do homem com o sagrado surge sob uma desconfiança total da possibilidade do bem em domínio social. Não se trata de retomar a ideia de que a sociedade corrompe o homem, pelo menos não tanto quanto nos parece muito mais presente a afirmação de que em sociedade o homem comporta-se como um animal em matilha, ou seja, é no grupo que o indivíduo descobre a sua ferocidade, sente o apelo da caça e o medo de ser caçado. Cito: «a virtude será sempre isolamento, vazamento, vazio, fragmentação, individualização, ascese» (p. 23).
   O tema central, a existir, será o da crueldade, esse ímpeto que está na origem da guerra e nos iguala às aves de rapina, aos abutres, às hienas e aos chacais que se digladiam por carcaças de animais mortos. O que nos distingue das feras é a linguagem, mas não para nos tornar melhores: «Na humanidade, se tudo é simetria, é porque a linguagem tudo simetriza. // Nas sociedades animais tudo é assimetria: tudo é predação. A relação entre as feras define a agressão sem reciprocidade. No mundo animal, não há a mais pequena guerra. A individualidade é extrema. A identidade, o género, a generalidade, a oposição que a sustenta surgem apenas entre os homens» (p. 14). A ausência e a solidão são, portanto, princípios básicos de uma ética que reconhece a sua falência no campo para o qual foi pensada enquanto regulador das acções e das interacções humanas.
   O que um livro como este torna claro é a dimensão omnívora, voraz, insaciável do homem e como atrás dela se estende uma imensa passadeira de sangue, sangue das vítimas de uma fome sôfrega e cruel. Mas, ao mesmo tempo, essa clareza instaura um paradoxo do qual nos sentimos reféns. Sabemos que uma sociedade de ascetas já não seria uma sociedade, uma sociedade de eremitas, de anacoretas do deserto, à porta da qual estivesse inscrito, à laia de máxima, «É preciso recusar o olhar dos outros» (p. 267), seria a negação da nossa própria natureza. Somos gregários, isso é um facto, mas não temos de ser escravos dessa condição. Em certo sentido, tendemos para a hipótese de o homem ser um vírus com a extraordinária capacidade de se ir autocontrolando com vacinas como, por exemplo, a da leitura.
   A síntese antropológica proposta por Pascal Quignard — e este “Os Desarçonados” (2012) é, sem dúvida alguma, um marco da chamada antropologia filosófica — é altamente convincente no diagnóstico, mas não propõe nenhuma resposta, nenhuma solução, que a não há, bem sabemos, a não ser a da necessidade absoluta de um pensamento que recuse a ordem, que se afaste dela, a inverta e questione: «É necessário que o pensamento seja capaz de desobedecer a tudo aquilo de que o pensamento, a pensância, a pendência, a dependência dependem» (p. 99). E nisto esta obra é altamente eficaz, nisto e na total negação da civilização, por oposição ao selvagem, como um bem em si mesmo.
 
CAPÍTULO LI
 
O sorites de Hannah Arendt
 
   Quanto mais uma sociedade é civilizada, mais os traços que a sua memória conservou são antigos. Quanto mais os traços da sua história são numerosos e variados, mais o mundo simbólico que ela desenvolve é rico e diverso. Quanto mais o mundo simbólico é fecundo e imprevisível, mais os homens que nela inventam novos objectos são engenhosos e por assim dizer visionários. Quanto mais os homens que trabalham multiplicam as proezas técnicas e difundem esses objectos cada vez mais aperfeiçoados, mais os indivíduos, uma vez devolvidos ao seu mundo privado, no fundo de si mesmos, se tornam sensíveis a algo que não produziram.
   Mais são atraídos por tudo o que é simplesmente dado.
   Mais a natureza os maravilha.
   Mais a selvajaria os fascina.
   Mais a crueldade desinibida os interpela, os obceca, os inebria.
 
Pascal Quignard, in “Os Desarçonados”, tradução de Diogo Paiva, Cutelo Edições, Maio de 2024, p. 137.

2 comentários:

sonia disse...

Obrigada pela bela resenha que mandou.

Anónimo disse...

Entendo os abutres como seres altamente úteis na Natureza e as feras não são crueis, cigem-se à dinâmica da vida, da necessidade e da sua constituição. Cruel é palavra que descreve a maldade de quem actua com a perfeita consciência de que faz mal a alguém sem necessidade, ou pior, que se satisfaz e se sente poderoso com o sofrimento e a derrota dos outros.