segunda-feira, 5 de agosto de 2024

UM CONTO DE ANTÓNIO AMARAL TAVARES

 


FEIRA DO RELÓGIO
 
   Furo a densidade de gente como uma visitação à largura da vida. Música africana de gosto duvidoso faz arder o espaço e os rostos que passam, que procuram e se expõem num lugar que se declara seu. Alguns parecem procurar apenas uma voz, um murmúrio, as cores, a gente, olhos que se penduram nos cabelos. Uma feira concreta e presente, sem teias na sombra, faz-me gostar mais da música. Aquele lugar não é o lugar onde passo os dias mais honrados. Uma bancada de venda de cassetes  e duas enormes colunas de som emitem música. Dois negros dançam vagamente ritmos sincronizados de ombros e de mãos. Avanço subindo vagarosamente por entre os corpos, a mesma música acompanha-me e cruza-se com a de um aparelho. Uma toada semelhante, que outro negro, jovem, segura ao ombro, como se abraçasse um país distante, uma poeira ocre sobre o alcatrão, grandes distâncias povoadas de embondeiros que nunca conheceu. Uma mulher branca, o cabelo grisalho e despenteado, vende peúgas em molhos. Tão sentada e calada como um pequeno enclave, sem vida nem ritmo, duas mãos caídas no colo. Um negro alto passa pela apertada turba que parece abrir-se à altura e ao orgulho intocável de um fato e chapéu de cor bege. Razões nobres, da cor da pele, uma nação vencedora, vestida de mistérios e rumores próprios e antigos. Noites quentes de amores e cheiros. Em grupo, jovens já presos às fronteiras pouco seguras do olhar que lhes resta, o muro da lei de um país pequeno demais.
   Passos errantes e ciganos, como uma cortina que se abre. Música cigana encontra o tom proibido da pele, mulheres bonitas de longos vestidos e saltos altos. Uma tão bela, que a seu lado dois homens parecem disputá-la no volume crescente da voz. Uma outra bancada de cassetes, mais música. T-shirts, gangas e sapatos. Estes o que eu procuro. Olho atentamente os exemplares e, a um sinal transmitido por fios invisíveis, da bancada ao lado desaparecem relógios e ténis. Tão rapidamente que quando olho para ela já só vejo a madeira de um sonho que acorda. Dois polícias passam devagar. Um, de meia-idade, seguro pela experiência e pela farda, o outro, mais magro e novo, que olha em volta como se visse mais do que a razão que o põe ali. Nada mais se ouve, senão a música com raça, tão apaixonada como os dois homens. Uma espera.
   Depois os relógios e os ténis reaparecem na teimosia da viola no coração dos ciganos. Eu escolho um par de sapatos, pago com a vergonha sem raça do dinheiro e continuo a subir. À vista do bairro da pantera cor-de-rosa, a beleza de um rosto nobre riscada pelo esquecimento, um homem de ombros largos apregoa lençóis, a voz eléctrica de um microfone abotoado à boca das ilusões que se repetem de terra em terra. Desço a mesma encosta para a saída da feira, a entrada de um país que a custo me envolve.
   Foram baratos os sapatos. E partiram pela sola antes que deixassem de me magoar os pés. Encontrei, num outro dia, numa outra nação, uns sapatos semelhantes numa montra, tão iguais quanto possível. Pelo dobro orgulhoso do preço.

 
António Amaral Tavares, in Um Dia, Um Homem, Medula, Maio de 2024, pp. 15-16.


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