ONTOGRAFIA
Ser como o mímico padeiro com
duas mãos explicativas não é jeito de
simular o compasso rebatendo
a distância comungada
ser à espera não é crescer
medos das imagens engolidas
que germinam no fundo do esófago
depois de um hálito fertilizante
ser dos olhos muito abertos, não sei
ser do orquestramento do teu riso
assim lançada numa rede que
titubeia, não sei
ser da viagem instantânea quando o
problema é a infiltração aqui,
o arqueio do ar face à minúcia
do osso articulado, não é problema
até que chegue um rosto que diz para pôr o pé
e aí tudo cora
ser do chão
com um jacto a sair do umbigo
ser a contradição
não é nada
ser inês não é bem
nem é dizer sempre que uma coisa
não é uma coisa
não vá essa coisa ser só
Inês Morão Dias (n. 1988), in Soco
e Sono (Tinta-da-China, Novembro de 2024). Após a estreia com Par de Olhos
(Fresca, Agosto de 2019), Soco e Sono é um contributo inabalável para a
afirmação desta poesia como uma das mais singulares na contemporaneidade
portuguesa. São poemas com um rasgo prosódico incomum, conseguido através de
inusitadas conexões vocabulares num complexo lexical que flui através de
associações fonéticas aparentemente mais empenhadas na exploração das possibilidades
de sentido do que na expressão de uma qualquer perspectiva unívoca acerca dos
temas abordados. Estes, na sua diversidade, surgem à solta num espaço vazio sem
lugar para afirmações categóricas. Faz-se aqui justiça a essa ideia herbertiana
da poesia enquanto discurso que procura dizer como tudo é outra coisa. Por
vezes elípticos, aqui e acolá hiperbólicos, noutras ocasiões desenvolvendo-se em
sequências mais ou menos longas, raramente estes poemas se deixam contaminar
por uma emotividade que se sobreponha ao gozo da língua que se questiona a si
mesma, uma «língua inventada», e às imagens vigorosas engendradas na plasticidade
das palavras. A excepção serão poemas tais como “A Física da Meta” ou o
derradeiro “Festa de Anos”, marcos de «um tempo entre não ter deuses e ainda
sem deus». Antiaforística, se assim podemos dizer, a poesia de Inês Morão Dias
opta pela deriva de uma “liberdade livre” que prefere a dúvida, a pluralidade, a natureza híbrida dos conceitos, o
questionamento, às «certezas que convidam a que fiquemos quietos». Há momentos,
raros, que a aproximam de pequenas narrativas, mas nunca se consentindo
arrastar para o óbvio, preferindo antes as zonas de estranhamento e de absurdo
fazendo «da ginga regra».
duas mãos explicativas não é jeito de
simular o compasso rebatendo
a distância comungada
medos das imagens engolidas
que germinam no fundo do esófago
depois de um hálito fertilizante
ser do orquestramento do teu riso
assim lançada numa rede que
titubeia, não sei
problema é a infiltração aqui,
o arqueio do ar face à minúcia
do osso articulado, não é problema
até que chegue um rosto que diz para pôr o pé
e aí tudo cora
com um jacto a sair do umbigo
ser a contradição
não é nada
nem é dizer sempre que uma coisa
não é uma coisa
não vá essa coisa ser só
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