domingo, 15 de dezembro de 2024

ONTOGRAFIA

 


ONTOGRAFIA
 
Ser como o mímico padeiro com
duas mãos explicativas não é jeito de
simular o compasso rebatendo
a distância comungada
 
ser à espera não é crescer
medos das imagens engolidas
que germinam no fundo do esófago
depois de um hálito fertilizante
 
ser dos olhos muito abertos, não sei
ser do orquestramento do teu riso
assim lançada numa rede que
titubeia, não sei
 
ser da viagem instantânea quando o
problema é a infiltração aqui,
o arqueio do ar face à minúcia
do osso articulado, não é problema
até que chegue um rosto que diz para pôr o pé
e aí tudo cora
 
ser do chão
com um jacto a sair do umbigo
ser a contradição
não é nada
 
ser inês não é bem
nem é dizer sempre que uma coisa
não é uma coisa
não vá essa coisa ser só
 
Inês Morão Dias (n. 1988), in Soco e Sono (Tinta-da-China, Novembro de 2024). Após a estreia com Par de Olhos (Fresca, Agosto de 2019), Soco e Sono é um contributo inabalável para a afirmação desta poesia como uma das mais singulares na contemporaneidade portuguesa. São poemas com um rasgo prosódico incomum, conseguido através de inusitadas conexões vocabulares num complexo lexical que flui através de associações fonéticas aparentemente mais empenhadas na exploração das possibilidades de sentido do que na expressão de uma qualquer perspectiva unívoca acerca dos temas abordados. Estes, na sua diversidade, surgem à solta num espaço vazio sem lugar para afirmações categóricas. Faz-se aqui justiça a essa ideia herbertiana da poesia enquanto discurso que procura dizer como tudo é outra coisa. Por vezes elípticos, aqui e acolá hiperbólicos, noutras ocasiões desenvolvendo-se em sequências mais ou menos longas, raramente estes poemas se deixam contaminar por uma emotividade que se sobreponha ao gozo da língua que se questiona a si mesma, uma «língua inventada», e às imagens vigorosas engendradas na plasticidade das palavras. A excepção serão poemas tais como “A Física da Meta” ou o derradeiro “Festa de Anos”, marcos de «um tempo entre não ter deuses e ainda sem deus». Antiaforística, se assim podemos dizer, a poesia de Inês Morão Dias opta pela deriva de uma “liberdade livre” que prefere a dúvida, a pluralidade, a natureza híbrida dos conceitos, o questionamento, às «certezas que convidam a que fiquemos quietos». Há momentos, raros, que a aproximam de pequenas narrativas, mas nunca se consentindo arrastar para o óbvio, preferindo antes as zonas de estranhamento e de absurdo fazendo «da ginga regra».  

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