Em “Os Amantes da Auto-Estrado do Sul” (não (edições), Setembro de 2024), Susana Araújo (n. 1975) amplia o campo experimental da sua poesia, adoptando uma estrutura de tipo narrativo em que a alternância entre prosa e verso surge acompanhada de um fio condutor ficcional dividido por duas histórias que a dado momento parecem cruzar-se. Repercutindo o trânsito numa auto-estrada, de um lado, temos a história de dois amantes em fuga e, do outro, uma investigação policial sobre o estranho desaparecimento da poeta Ezra Pound: «Ezra Pound, também conhecida entre amigos como Elizabeta ou Beta Pound, vivia há mais de quinze anos no Bairro de São Miguel, em Alvalade, não muito longe do prédio em que nascera» (p. 40).
Há uma dimensão lúdica na poesia de Susana Araújo que conhecíamos dos livros “Dívida Soberana” (Mariposa Azual, 2012) e “Discurso aos Pacientes Cirúrgicos” (não (edições), 2020), acompanhada de uma atenção ao social que neste livro não se perde de todo, antes adquire novos desenvolvimentos num dispositivo eficaz enquanto questionamento de uma herança modernista que, passado um século sobre a queda dos muros formais e a ruptura total com quaisquer espartilhos prosódicos, actualmente se manifesta na rasura de fronteiras entre géneros. Trata-se de uma obra onde a matriz poética irrompe no campo da ficção policial gerando enigmáticas e misteriosas possibilidades especulativas acerca do sentido e do significado latentes nestes textos divididos em três partes mais um epílogo.
«Como um policial, um poema derrapa sempre na sua própria pista, e cada pista é um indício para a morte» (p. 13), escreve-se logo no início da viagem. Vários quilómetros percorridos, é a mulher-polícia, de nome Penélope, quem parece desfiar o novelo: «Tentas ler, tentas sentar-te com calma para leres aquilo, mas se fores atrás das palavras, se fores em busca do sentido, não dá. Esquece!» (p. 109) O leitor vê-se, deste modo, no interior de um labirinto que resiste a qualquer esforço exegético, restando-lhe pouco mais do que abrir-se ao divertimento que é perder-se neste tráfego «de equívoco / em equívoco» (p. 113).
Em “Os Amantes da Auto-Estrada do Sul” ecoam os ensinamentos de uma autora como Anne Carson, exímia na articulação de géneros em obras de índole poética apresentadas como sendo romances em verso ou ensaios ficcionais. A necessidade de lhes atribuirmos uma qualquer categoria identitária, por assim dizer, foi completamente ultrapassada pela natureza híbrida ou anfíbia da literatura contemporânea, herdeira, no caso português, de marcos tais como “Húmus”, de Raul Brandão, ou o “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares. Ora, neste policial poético de Susana Araújo sobressai, precisamente, essa capacidade de transpor «a lei do género» seguindo por «Vias que se dividem entre o amor e a morte» (p. 25).
O que vislumbrávamos nos livros anteriores da autora e mais nos agradava, nomeadamente uma consciência aguda do seu tempo histórico, não se perdeu por completo, surgindo agora mais disfarçadamente envolvido no discurso de personagens que minam o desígnio de um sujeito poético: «Uns trabalhavam ali e outros era ali que viviam. A electricidade servia todo o bairro através de um contador único com potência industrial, não havia ainda água potável nem esgotos. A poucos metros de distância ficava o Clube de Golfe Aroeira Pines Classic, junto a vários hotéis de luxo» (p. 80). Conserve-se a ironia. E desdobrem-se as vozes.
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