sexta-feira, 7 de março de 2025

UM POEMA DE MARÍA MERCEDES CARRANZA

 


O OFÍCIO DE VESTIR-SE

De repente,
quando desperto de manhã
acordo-me de mim,
secretamente abro os olhos
e procedo a vestir-me.
Primeiro coloco o meu gesto
de pessoa decente.
Em seguida ponho os bons
costumes, o amor
filial, o decoro, a moral,
a fidelidade conjugal:
para o final deixo as recordações.
Lavo com primor
a minha cara de boa cidadã
visto a minha tão deteriorada esperança,
meto na boca as palavras,
escovo a bondade
e ponho-a como um chapéu
e nos olhos
esse olhar tão amável.
Dentro do armário selecciono as ideias
que hoje me apetece iluminar
e sem perder mais tempo
meto-as na cabeça.
Finalmente
calço os sapatos
e começo a andar: entre um passo e outro
murmuro esta canção que canto
à minha filha:
"Se à tua janela chega
o século vinte
trata-o com carinho
que é a minha pessoa".

In TRANSLOCAL. Culturas Contemporâneas Locais e Urbanas, Tradução, n.º 5, 2022, coordenação e autoria de Ana Salgueiro e Duarte Santo, coordenador convidado Jeronimo Pizarro. Nascida em Bogotá, Colômbia, a 24 de Maio de 1945, filha do poeta Eduardo Carranza e de Rosa Coronado, cresceu na Europa onde o pai era diplomata. Estudou Filosofia e Letras na Universidade dos Andes, trabalhando posteriormente como jornalista. Estreou-se na poesia em 1972, com “Vainas y otros poemas”. O irmão, Ramiro Carranza, foi sequestrado pelas FARC, levando-a a liderar uma campanha pela paz e pela libertação dos sequestrados. Vítima de depressão, suicidou-se com barbitúricos a 11 de Julho de 2003. O poema acima transcrito foi incluído no livro “Tengo miedo” (1983).

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