sexta-feira, 27 de junho de 2025

CINCO POR CENTO

 
Era uma vez um país onde as pessoas andavam descalças, não por serem atrasadas ou indigentes, não por necessidade, não por miséria. Elas andavam descalças e eram felizes, gostavam de sentir-se ligadas à terra, tinham ruas atapetadas de erva que as protegia. Não se calçavam para não sentirem os pés apertados. Calcorreavam os caminhos sem qualquer esforço, tinham as palmas dos pés fortalecidas e, porque andavam descalças, possuíam uma consciência muito mais apurada dos seus corpos. Houve até um estudo científico que falou desse povo como aquele cuja propriocepção (palavrão para consciência corporal da posição dos pés) era mais eficaz, o que oferecia vários benefícios à saúde da população. Eram pessoas verticais, tinham uma coluna vertebral impecável e os músculos fortalecidos. A única pessoa infeliz nessa nação era um sapateiro, um artesão fabricante de sapatos que vivia de se queixar do mau negócio. Assim foi até ter conhecido um grande industrial do calçado que, descobrindo naquele país uma excelente oportunidade de negócio, sugeriu um acordo com o artesão. Em troca de estratégias que incrementariam exponencialmente o mercado de sapatos no país onde toda a gente andava descalça, o industrial amealharia uma elevada percentagem sobre as vendas. Selado o acordo com um aperto de mão, o industrial do calçado ordenou aos seus funcionários que espalhassem pelos caminhos daquele país todo o tipo de vidros partidos, pregos e alfinetes, pioneses e objectos com cantos, bordas e pontas afiados capazes de cortar e perfurar carne humana. Não demorou muito que o velho e triste artesão tivesse de contratar pessoal para a sua nova fábrica. A erva desapareceu do país onde as pessoas andavam descalças.

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