domingo, 21 de setembro de 2025

PACTO

 


TARDE

Faz-se tarde, faz-se muito tarde
neste quarto entre quartos perdido.
De quanto houve e não vi, sobram
um semblante tocado pelo medo,
o fogo extinto das barricadas, espectros
que do fundo, em surdina, surdem.
Faz-se tarde nas palavras, tão tarde
que não sei já dizer, assim deserdado,
que na soleira lívida dos meus dias
se acumularam ossos, folhas mortas,
a magnífica sujeira dos séculos.

João Miguel Aragão (1995), in Pacto (Poética Grupo Editorial, Julho de 2025). Não é vulgar encontrar num livro de estreia o grau de depuração que João Miguel Aragão (Almada, 1995) nos oferece neste Pacto, título que sugere, desde logo, uma hipótese de encontro, um acordo entre partes, uma ideia de aproximação ao outro. Ao lermos os poemas, distribuídos por três secções, percebemos como os opostos se conjugam numa mesma coexistência: a vida e a morte, o dia e a noite, a luz e a sombra. Tudo se liga a tudo nesta poesia altamente expurgada de excessos, cuidadosa com as palavras e minuciosa como em Carlos de Oliveira ou Sebastião Alba. O discurso contido em poemas breves de verso curto está longe de ser, neste caso, uma estratégia de sedução assente em vislumbres de tipo aforístico ou, menos ainda, em apontamentos quotidianos humorísticos. Antes pelo contrário, a brevidade exige-nos calma, que não nos precipitemos em leituras apressadas, que refreemos o fôlego com passos lentos, certeiros, recuos e avanços mais esclarecidos, de modo a que seja possível capturar os jogos de oposições que matizam cada poema. Estas oposições são pautadas pela participação dos contrários em cada uma das partes, num percurso que é sempre mais de inclusão do que de exclusão. Assim, logo no primeiro poema, intitulado “Semente”, se escreve à laia de arte poética: «Seja o verso / a luz que visita / algum desvão mais obscuro» (p. 11). Mais adiante, quase a encerrar a colectânea, este “Dentro” é bem ilustrativo do que aqui dizemos: «O oásis que desejas / não o procures na paisagem, / mas dentro de ti, / no íntimo de algum deserto. / Não esqueças, no entanto, / que dentro desse oásis / outro deserto / te espera» (p. 55). Assinalemos esta estreia, é mais do que justo fazê-lo estando diante de um trabalho que revela já uma voz ciente do terreno em que pretende desabrochar e inscrever-se.

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