Em São Martinho do Porto comecei a nascer pela segunda vez. Já nessa altura a Casa das Palmeiras fora destinada a transformar-se num bloco de apartamentos; os elogios à baía predilecta de Rei D. Carlos haviam sido substituídos pelas críticas amarguradas de Eduardo Prado Coelho; os banhos termais das Caldas da Rainha tinham dado lugar a discussões políticas intermináveis; e o gosto pela enseada das famílias nobres e ilustres - como, por exemplo, os marqueses de Rio Maior (onde nasci) - há muito fora traído pelas piscinas algarvias.
Só o nevoeiro, o microclima, permanece como elo inexpugnável de uma terra com a sua história. Porque São Martinho do Porto, como a maioria dos lugares, não resistiu à fome dos homens e, com o tempo, perdeu o que de mais importante o tempo nos come: a alma. Seja como for, foi por ali que eu comecei a nascer... pela segunda vez.
Subo a duna de Salir e sigo, por carreiros facilmente rastreados, até à quebrada de São Romeu. Ainda logro algum silêncio, a paz marítima do outro lado da cimentada civilização. Espero que o sol caia e a respiração se recomponha. Depois regresso a casa, bebo uma cerveja, articulo umas palavras. Escrevo sobre o assunto:
SÃO MARTINHO DO PORTOINCOMPLETO
as constelações emanam estranhos perfumes
contemplo a luz magoada da lua
evado-me na ciranda do álcool
compareço ao âmago de faca na mão
perscruto o elixir das lágrimas indistintas
feéricas sombras acasalam nas barcas
fico prisioneiro de uma prosa de poeta
se a deus desse o corpo ao diabo roubaria a alma
in antologia do esquecimento, 2003
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