De Jorge Roque tinha lido O Chão Serviu-lhe de Céu (Edição de Autor, 1999). Custou-me 50 cêntimos, numa banca de livros perdidos para a leitura. Em boa hora o adquiri. Desconfio que o mais recente Senhor Porco não venha a ter sorte idêntica. Joaquim Manuel Magalhães e António Guerreiro referiram-se ao livro, ambos no suplemento Actual do jornal Expresso. O segundo descreveu Senhor Porco como «um tratado de ética que concede ao porco um valor alegórico e o transforma num emblema universal» (12 de Fevereiro de 2005). Já o autor de Os Dois Crepúsculos, referiu-se ao livro de Jorge Roque como um «ardiloso conjunto de estrofes especulativas, preocupado em pensar o homem como uma condição que pode conter ou confrontar o negativo e o desejo do seu contrário, longe de uma sofística que tudo relativize para tudo desculpar» (26 de Fevereiro de 2005). Temo não ter apreciado tanto este mais recente cozinhado de Jorge Roque como os críticos acima referidos. O que O Chão Serviu-lhe de Céu tinha de poético, tem o Senhor Porco de pretensiosamente político. E eu, confesso, sinto-me cada vez mais inclinado para o poético. A cada leitor o catálogo que lhe convir. Do ponto de vista do género, a escrita de Jorge Roque passeia-se pelo lugar do indefinível. Não é propriamente poesia, também não é prosa. Não é filosofia. É qualquer coisa que assume todas essas forças da expressão e faz-se imprimir no mundo pela forma aforística, mais ou menos retórica, mais ou menos reflexiva. Este Senhor Porco é mormente caricatural, algo que se nota de forma clara nas ilustrações de Guilherme Faria. Mas este livro tem um propósito: «não deixar calar o grito do homem» (p. 7). Esse propósito, quanto a mim, falha os seus intentos. É que, no final, fiquei com a sensação que, no decorrer daquelas páginas, roncou-se mais do que se gritou, ainda para mais quando este «conjunto de observações» não se livra de um certo aspecto tautológico no tema e na metáfora utilizada. Quem é o porco? «Pode dizer-se que o porco é um homem degenerado (não sou, de resto, o primeiro a dizê-lo). A originalidade é que degeneração significa para ele progresso» (p. 31). No fundo, o porco é o pragmático dos dias de hoje, é o indivíduo bem sucedido que a sociedade de consumo fabricou nas suas pocilgas da informação. É o homem de sucesso que, em prol dessa ideia de sucesso, converteu os valores em mercadoria. É o homem degenerado que se entretém com a miséria dos outros. São todos aqueles que abdicaram da coragem, do combate, do grito, deixando-se amestrar pelo medo: «O que define o porco é o medo: não o que é, mas o que falhou ser. Neste sentido, requer técnicas particulares de análise: não o podemos compreender no plano da possibilidade, mas da consequência (o porco é o homem que não foi)» (p. 19). O homem é do domínio do ser, o porco é do domínio do ter. De Stirner a Debord, de Vaneigem a Onfray, nada disto é novo. Mas o problema nem é esse. O problema são as cedências feitas ao Senhor Porco neste «tratado» que, supostamente, lhe deveria resistir. Senão atentemo-nos: «Não, não somos todos iguais (e dói tanto sabê-lo)» (p. 47) .Não deveria ser o contrário? Não deveria o homem, aquele que se define pelo «combate sem tréguas», por «lutar até ao fim», pela resistência, pela não desistência, pelo ser, não deveria esse homem rir de gozo perante a diferença. Não deveria antes ao homem doer a globalização do medo que define o Senhor Porco? Não lhe deveria antes doer essa igualdade que alastra pelos charcos do mundo como um ronco indelével? Não deveria antes o homem magoar-se com as ameaçadoras ideologias gregárias do Senhor Porco? É a cedência final ao império dos porcos, como coisa inevitável, ainda que essa cedência se mascare de «verdade adiada», que amaina o grito do homem que «nunca escreve o porco que nele se esconde» (p.36): «E por fim, a verdade que adiei até aqui (tão difícil verdade): todo o homem tem um pouco de porco. O que o faz homem é o combate sem tréguas» (p. 47). Fica bem ao autor este gesto de humildade, esta recusa de auto-eleição moral. Mas rouba confiança e solidez aos raciocínios antecedentes, acabando por transformar a dicotomia porco/homem numa enorme falácia. Já que não nos será possível determinar o quanto de "senhor" há no "porco", assim como jamais poderemos saber o quanto de "porco" há no "senhor".
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