segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005

TARNATION


Para quem desconfie de jovens que aos trinta anos façam da memória o seu magma criativo, aconselha-se a primeira longa-metragem de Jonathan Caouette: Tarnation. Filme de memórias, no sentido mais literal do termo, filme-catarse num outro sentido, Tarnation é um exímio trabalho de colagem que traça o retrato da relação de um filho com a sua mãe paranóica, psicótica, neurótica, ou lá o que lhe tenham diagnosticado os médicos da alma. Ao mesmo tempo que biografa a mãe do nascimento à morte, Caouette pinta um auto-retrato que não deixa na penumbra nenhuma olheira, nenhuma ruga, nenhum ponto negro. Trabalho de expurgação, este é, por isso, um filme decadente, com tudo o que de belo possa haver na decadência. Não é fácil gostar de Tarnation. Será menos difícil diminui-lo, chamar-lhe exercício insuportável de autocomplacência, de exibicionismo estéril, débil encenação narcisista ou coisa que o valha. Será menos difícil apontar-lhe os defeitos e acusá-lo de pretensioso, como se fosse defeito um filme ter pretensões. Tarnation é, isso sim, um objecto de subversão cinematográfica com diversas implicações estéticas. Desde logo porque grande parte do filme consiste num álbum de fotografias mostrado com banda sonora e legendas sumárias. Excelente banda sonora, refira-se. Depois porque a outra parte se desenvolve a partir de uma espécie de manipulação permanente do real, através da construção de um lego imagético onde cada peça é roubada a milhares de «home-videos» que Caouette foi filmando ao longo da sua vida. Extravagância, burlesco, Kitsch, grotesco, misturam-se com a dor de quem não quer tornar-se naquilo que ama. Caouette ama a sua mãe, mas teme acabar louco como ela. A riqueza deste filme consiste precisamente em ser constantemente aquilo que não é: um documentário que não é documentário, um filme que não é somente um filme, uma peça sobre um real que está muito para lá daquilo que é mostrado, porque por mais objectiva que seja a câmara ela nunca logra mostrar o que se esconde por detrás daquilo que se vê. A câmara capta o visível, mas o que não se vê e só pode ser sugerido é, muito provavelmente, o princípio sem o qual nenhum visível seria real. A certa altura a mãe de Caouette pede-lhe que desligue a câmara, quer falar com ele de forma natural, sem ficar sujeita à intromissão usurpadora daquele objecto. Noutra cena, em que Caouette se encontra sozinho com a sua câmara, naquilo que deveria ser um acto de confissão, as palavras travam-se-lhe na garganta e ele não consegue falar. No fundo, tudo o que vemos não passa de uma constante encenação sem que haja propriamente um encenador. Talvez a câmara seja o encenador que falta. Tal como a loucura nos deixa nessa ambiguidade de não sabermos bem a fronteira que delimita o que se é do que se está obrigado a ser. É esta ambivalência a poesia que habita em Tarnation, palavra que mistura eternal com damnation.

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