quarta-feira, 1 de junho de 2005

POESIA EM VIAGEM

A editora Assírio & Alvim resolveu reeditar um dos primeiros e mais agradáveis títulos da colecção documenta poética. Trata-se de Poesia em Viagem, do poeta suíço Blaise Cendrars (n. 1887 – m. 1961). A tradução dos três poemas que compõem Poesia em Viagem é da responsabilidade de Liberto Cruz, a quem se deve também a introdução (actualizada), algumas notas acerca dos poemas e a sempre útil sinopse biográfica sobre o autor. Da Introdução de Liberto Cruz destaco o seguinte “axioma”: «A poesia é acção e o poeta é um agitador, não um contemplativo». Pois bem, a nenhum poeta caberá melhor o epíteto de agitador do que a Blaise Cendrars, cuja existência foi marcada pela inquietação constante, pelo nomadismo, pela recusa da fixação (em todas as suas vertentes), pelo cosmopolitismo, pela universalidade. 
Autêntico cidadão do mundo, Cendrars reflectiu na sua criação literária a sua própria vida, desde logo na forma como transcendeu todos limites, a havê-los, da criação poética – mormente os que separavam, à época em que viveu, a prosa da poesia. O segundo poema deste volume, Prosa do Transiberiano (Prose du Transsibérien et de la petite Jeanne de France – 1913), é o melhor sintoma disso mesmo. A viagem que encontramos nesse poema é tão irónica quão dramática, coloca permanentemente o poeta em causa, na exacta medida em que em causa está igualmente o progresso do mundo. Julgo podermos estabelecer um paralelismo ente a forma como o poeta interpreta o mundo e se interpreta a si próprio: ambos desafortunados, arruinados, perdidos entre o que não são e o que poderão ser. A viagem aqui em causa é mais a viagem do mundo pelo homem que o percorre, sempre a caminho de qualquer coisa que ainda não é: «Tantas imagens-associações que não posso revelar nos meus versos / Porque sou ainda muito mau poeta / Porque o universo me ultrapassa / Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho de ferro / Porque não sei ir ao fundo das coisas / E tenho medo» (p. 85). 
Este tom de lamentação polvilhada de ironia, de impressões carregadas de memória, está também presente nos outros dois poemas: O Panamá ou as Aventuras dos meus Sete Tios (1918) e Páscoa em Nova Iorque (1912). Este último, escrito em tom de desabafo com Deus, numa espécie de oração onde as porcarias do mundo vêm à superfície, é especialmente excepcional pela forma como nos lança num caudal de sentimentos antagónicos. E, no entanto, todos fazem sentido: «Toldado, na confusão empenachada dos telhados, / O sol, é a vossa Face profanada pelos escarros» (p. 45). Óptima oportunidade para rever alguma da poesia de um dos poetas mais marcantes do século XX, esta reedição de Poesia em Viagem torna-se especialmente congruente numa altura em que tanta discussão estéril se promove em torno do que possa ser matéria de poesia. Nestes poemas tudo é matéria de poesia, pois a poesia não fractura a vida. Antes espelha a intensidade com que cada um a vive.

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