A expressão «mútuo consentimento» é vulgarmente utilizada para designar um tipo de divórcio em que "os cônjuges deixam de ter de fazer uma vida em comum, apesar de se manterem no estado civil de casados". Helder Moura Pereira (n. 1949), que desde muito cedo procurou a «quotidianização do mundo íntimo» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsuclos, A Regra do Jogo, 1981), serviu-se recentemente do conceito para dar título a um extraordinário conjunto de poemas alicerçados sobre a temática da separação. Mútuo Consentimento (Assírio & Alvim, Maio de 2005), dá continuidade a uma obra cujo lugar na poesia portuguesa tem sido o da permanente descontinuidade. O primeiro livro do poeta, Entre o Deserto e a Vertigem, data de 1979. Passados mais de 25 anos, a poesia de Helder Moura Pereira permanece indefectível no que à atitude anti-academista diz respeito, apesar das inflexões que se vão notando nos seus livros mais recentes. A linguagem continua comum, humilde e directa. A cadência, ainda que partida em verso, discorre como se fosse prosa. A solidão e a tristeza permanecem de braço dado com a ironia. Mas agora há lugar para uma espécie de “resignação” perante o que se considera “inevitável”, que surge como condição essencial de sobrevivência: «Podíamos dizer que a culpa é nossa, do mundo, / da guerra, dos ricos e dos pobres, de nos julgarmos / incompreendidos, dos amigos que nos traíram, / dos amigos que traímos, daqueles que nos mataram / em vida, daqueles que nos absolverão na morte. / / Mas digamos a verdade: calhou assim, foi assim, / passou-se assim. Estamos aqui, como se fôssemos / eternos, à espera que o tempo passe. Inscrevemo-nos / num seminário cujo tema era O Tempo, tínhamos / de saber o que era o intervalo consciente» (p. 17). Os versos, arrumados em estrofes muito bem delineadas, marcam o tempo destes poemas que podem ser lidos isolada ou sequencialmente. Temos três partes que sugerem, de forma mais ou menos declarada, três tipos de separação: a separação do que fica para trás no tempo ou daquilo que a morte nos rouba, a separação de um outro numa relação amorosa e, por fim, a separação do real como resguardo do lado terrível que o tempo nos grita. Mas o que se impõe, em qualquer dos casos, é sempre a dor da ausência: «Quem me dera que dissesses / presente quando fosse preciso. // Sem amor a gente anda por aqui / a gemer de dor por dentro, é a verdade / pura e simples e o resto é conversa. / Já que o mundo está como está / ao menos que o lastimássemos a dois» (p. 57). Não se precipite o leitor em julgar um poeta que por duas vezes se arroga no domínio da verdade. A verdade aqui é sinónima de desespero, procura da simplificação, resistência à deriva metafísica. A verdade aqui, como de resto em qualquer outro lugar, só pode ser uma forma de arquitectar o mundo pela palavra poética. Porque no final o que nos resta é o desejo de um reencontro, ainda que meramente virtual, ilusório e desencantado: «Toda uma cena a que interpretações / sobre a verdadeira essência dos solitários / acrescenta nulidades à tristeza já sabida. / Mete dó, exclamaste pelo telefone, / como se te tivesse lido um poema, / hás-de levar muitas palmadinhas / nas costas e ainda te verei num blog teu / a pedir que te acarinhem e tenham pena / como de um cego à esmola no metro» (p. 99). É inevitável que uma poesia deste género, feita de citações menores e pueris, frugal na filosofia e superficial na eloquência lírica, esteja condenada à negligência por parte das cátedras que insistem em canonizar a poesia portuguesa segundo parâmetros boçais, carreiristas e absolutamente caricaturais. Péssimo seria que, no caso, se desse o contrário, pois estes não são versos de circunstância. São versos que a partir das circunstâncias dão “alma” à: «Fantasia barra curiosidade, vício traço / mecanismo, corpo dois pontos nada» (p. 96).
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