terça-feira, 12 de julho de 2005

A GÉNESE DO AMOR

A propósito do mais recente livro de poesia de Ana Luísa Amaral (n. 1956), três apreciações diferentes: livro menor (Pedro Mexia, Diário de Notícias, 20 de Maio de 2005), projecto não inteiramente conseguido (Eduardo Prado Coelho, Público, 21 de Maio de 2005) e muito sábio e muito belo livro (Paula Morão, Visão Online, s/d). A leitura de Paula Morão parece-me a mais aprofundada, pelo que tendo a inclinar-me para o seu juízo final. A Génese do Amor é o décimo livro de uma poeta que se estreou em 1990 com Minha Senhora de Quê. À data do primeiro livro publicado, Ana Luísa Amaral contava 34 primaveras. O facto, se não é de todo determinante, pode revelar um certo cuidado no aprumo dos versos. Quero dizer, uma paciência na maturação da escrita que distancia a autora da febre editorial que vem assolando os poetas mais jovens nos últimos anos. Contudo, apesar de editada na década de 1990, Ana Luísa Amaral é de uma geração de poetas tão díspares como Nuno Júdice, Carlos Poças Falcão, José Alberto Oliveira, Carlos Alberto Machado, Luís Miguel Nava, entre outros. O primeiro aspecto que salta à vista em A Génese do Amor é o cuidado na arrumação dos poemas, nas opções lexicais, na cadência, por vezes tão ingrata, do verso curto. Se ainda faz sentido falar em livros de poesia, em vez de livros de poemas, isso deve-se a livros como este. O livro vale como um todo, e este todo está de tal forma bem estruturado que procurar nele um poema que se saliente dos outros será como amputar-lhe um membro. Abre com um intróito intitulado topografias em quase dicionário. Em causa está a enunciação de uma reaprendizagem do mundo pela busca dos fundamentos do amor. A poeta afasta-se das tendências da poesia recente quando rejeita a importância do lugar e do tempo na sua viagem: «Não interessa onde estou, / não me faz falta um mapa / de viagem» (p. 9). E o tempo apenas nos serve para constatar o não-lugar do amor, do amor que não se renova, porque «amor é tudo o que dele sabemos» (p. 10). Para tal empreitada, Ana Luísa Amaral evoca os grandes poetas do amor e suas respectivas musas: Camões e Catarina/Natércia (anagrama de Dona Caterina de Ataíde), Dante e Beatriz, Petrarca e Laura. As relações sugeridas nos poemas são difíceis de entender, não parecendo isso o mais importante. Note-se, contudo, este primoroso NATÉRCIA FALA A CATARINA (p. 43): «Nunca eu por inteiro, / embora a meio, / assim me és: // tu, corpo, de verdade, / eu, na verdade: nada». O jogo estabelece-se entre um real corpóreo e uma realidade que, sendo nada, não deixa de ser real. Serve o poema para relevar a distância que separa aquele que ama da coisa amada, que é a mesma que vai do cantar ao ser cantado. Natércia lamenta-se de ser apenas em verso, deseja um corpo que morra como o de Catarina. Uma é imagem da outra e, enquanto imagem, não morre mas também não sente. Será toda a poesia essa imagem que não sente, ainda que faça sentir? Será toda a poesia imagem eterna dos corpos finitos? Os desejos de Natércia, Catarina transformada em canto, isso nos fazem crer: «Eu sou só essa / que sonha aquele / que entre sonhos / e versos / me sonhou // Reúne-te comigo, / minha amiga, / minha metade / que desejo inteira // E ao teres o dom da fala, / diz-lhe a ele / que eu anseio por ser / o que tu és // Sem desejar ser tu: / inominada». (p. 44) Natércia, que é quem mais aparece ao longo de toda esta encenação, personifica a noção de «imagem» que conhecemos doutros livros da autora. A génese do amor é a génese de uma visão, de uma imagem que tem povoado a vida desde que «nasceram / as primeiras perguntas sobre os deuses, / o zero, o universo». (p. 59) Porque o amor também nasce dessa capacidade de nos deixarmos espantar com o outro e com o mundo. E constrói-se, precisamente, na tensão que há entre nós e o que está fora de nós. No poeta essa tensão acontece no poema, porque no poeta a vida em verso pode ser maior do que a outra vida (ver p. 20). Importa, no entanto, problematizar. É que o amor cantado pelos poetas, o da vida em versos, induz um amor mitológico bem distante daquele que se vive de facto. Mas de mitos se faz a poesia. E, já agora, a vida.

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