terça-feira, 23 de agosto de 2005

O SOPRO DA TARTARUGA

Não conheço João Miguel Henriques, não faço a mínima ideia quem seja. Desconfio que não faz parte da “coutada literária do Expresso”, nem do clube de amigos do DN Jovem, assim como desconfio que não esteja inscrito na Associação Recreativa de Vila Nova de Famalicão. Posso estar rotunda e quadraticamente equivocado, mas algo me diz que não. Caso contrário, este O Sopro da Tartaruga que João Miguel Henriques assina já andaria de boca em boca, de teclado em teclado, a saltar de blog em blog como mais um livro, digamos assim, a ler. Ainda para mais tratando-se de livro de praticante, embora avulso, de posts - assim o indica a referência nos créditos finais a um weblog que dá pelo nome de Quartos Escuros. Do weblog, tendo em conta o ritmo de actualização, apanhado à pressa numa breve caminhada pelos arquivos, pouco me apraz dizer. Mas sobre o livro inquieta-me a necessidade de, no mínimo, ser eu a afirmar que este é um livro a ler. Não se trata de obra revolucionária, com pretensões de genialidade, inovação extraordinária ou literariamente superior. Não percamos porém de vista que toda a obra, pela sua própria definição, traz consigo pretensões que nem a simplicidade, nem o comedimento, nem a abnegação logram encobrir. O Sopro da Tartaruga terá as suas pretensões, mais que não seja aliviar o peso do mundo que o poeta carrega às costas e o leitor partilha. Metáfora do sujeito poético, talvez, a tartaruga pode muito bem simbolizar essa condição do homem que suporta o mundo arfando, «entregue somente / ao peso do corpo» (p. 34), enquanto concentra a sua morada no lugar do poema. E se o poema não é salvação, pode muito bem ser despudorada aliviação: «quando ela me disse aquilo tudo / como eu merecia alguém melhor / como o amor que existira / mais depressa fora que viera, / não pude evitar vaguear pelo pensamento / e veio à lembrança uma cabra que eu tivera / e como era porcalhona, / como comia as ervas mais daninhas. / e era má, os cornichos em riste. // porca porca porca / era esta cabra que eu antes tinha» (p. 13). A epígrafe inicial de Philip Larkin não permite induzir em erro a constatação das opções feitas: poemas breves, linguagem simples, não necessariamente simplista, refinada ironia, roçando por vezes o nonsense, com algum gosto pelo jogo formal e pela significação dúbia (há também alguns arcaísmos pelo meio). Sublinhe-se, igualmente, certa tendência para versos de um lirismo mais harmonioso que contrasta com o tom pesaroso da maioria dos poemas. Um mui breve exemplo: «dentro de mim e por mim inteiro também pode cair uma tarde» (p. 14). Contudo, o que há a reter de mais atraente neste «sopro da tartaruga» é o tom ao mesmo tempo irónico e sofrido com que se evoca (o fim de) uma relação a dois e a ideia final de um recolhimento irresolúvel. Poucos serão os que estão dispostos a aceitar como poética esta desarmante clareza: «sento-me, existo / (meio existindo). / levanto-me apenas / de onde me encontro / para onde não quero estar. / recolho o meu corpo / para dentro do quarto. / se me esforçar o bastante / apagarei da minha presença / qualquer lembrança // talvez tu mesma / te esqueças que existo / (meio existindo). / talvez jamais soubesses / (terei confessado?) / com rigor e por completo / que sem ti / sem o teu verbo / o teu enlace puro / só se é possível existir / triste e pela metade» (p. 73).

Sem comentários: