quarta-feira, 28 de setembro de 2005

OS FANTASMAS INQUILINOS

Assim muito a custo, lá descobrimos que Daniel Jonas nasceu no Porto em Abril de 1973. Publicou, em 1997, O corpo está com o rei (Prémio AEFLUP/CGD) e, em Setembro de 2002, Moça formosa, lençóis de veludo nos Cadernos Do Campo Alegre. Os Fantasmas Inquilinos, agora publicado pela Cotovia, é então o seu terceiro livro de poemas. Na colecção de poesia das Edições Cotovia estávamos habituados a ver poetas de outro calibre: Pavese, Celan e, mais recentemente, Philip Larkin e Alda Merini. Em boa companhia se estreia o nosso poeta numa editora de maior projecção. Isto, por si só, não faz o acontecimento. Nem mesmo o facto de alguns já haverem olhado para esta poesia com olhos de espanto tais que a colocam no patamar, quanto a mim exagerado, da revelação do ano. Folheando Os fantasmas inquilinos deparamos, desde logo, com uma imensa diversidade formal que vai do poema epigramático ao poema longo. Quer-me parecer que é neste último “género” que a poesia de Daniel Jonas melhor se impõe. O problema é que não são muitos os poemas longos neste livro. Saliento, entre mais dois ou três, Cameo, Três mulheres e um céu de Delft e Psicodrama. Por si só, estes três poemas valem o livro. Não que o restante material seja de menor relevância, embora esteja longe de irmanar a intensidade e o fôlego da trindade supracitada. Vamos a contas: impressionante proficuidade lexical (o que, em certos casos, chega a tornar fastidiosa a leitura), extrema habilidade com os jogos de palavras (trocadilhos, cacofonias, enigmas, rimas internas, «rimas circulares», aliterações, há de tudo um pouco nestes poemas), referências e envios vários (de Aristóteles a Kant, de Hölderlin a Mandelstam, de Baudelaire a Rimbaud, entre muitos outros), um gosto permanente pelo absurdo (talvez Jonas seja o mais beckettiano dos nossos poetas recentes), eclectismo poético (patenteado no domínio de várias soluções que com impressionante à vontade circulam entre a tradição e a vanguarda), parecem-me ser os elementos mais relevantes desta poesia. A poesia aparece aqui como uma realidade de mecanismos autónomos, uma mecânica compulsiva a desbravar campos de sentido. «Um poema é: não pode ser doutra maneira» (p. 82). Imaginemos O’Neill à mesa com João Miguel Fernandes Jorge: temos Daniel Jonas. Do primeiro, a marca intemporal do absurdo, o aspecto lúdico, a atitude experimental, o quotidiano a embrulhar-se na linguagem; do segundo, um amplo «universo referencial», a agilidade no recorte da realidade e a lógica da ambivalência. Exemplos, podem ser muitos. Deixo este: «O projecto é: acender a televisão com um controlo remoto / e cada vez mais reticente à mudança, lareira hertziana / para o degelo da alma, evocar um paradigma ou dois, / a eficiência do consolo moral, pôr de pernas para o ar / o que rastejava, comer o miolo da estearina / ou ver dilatarem as sombras / conforme a perspectiva e conforme a perspectiva / ter vários pontos de vista e não só no momento / mas fundir no espaço a dança em redor de mim. Isto é cubismo / existencial, ou a dimensionalidade da memória: / o cheiro a gato, aquele odor bafiento a reality show, / tão toda bonita em cada uma das minhas câmaras era / entre escamas de cebola e lavatórios lascados / de tingir cabelo. Havia portas abertas e prateleiras / e uma poética de se trazer por casa // e ainda o bordão que meneio não é o de Moisés / nem a épica a de Tasso, / ainda o calor não é o de Toledo nem o de Córdova / nem o meu estilo de ginete, / antes habito o chamado poema ocasional, / ou a longa sestina, e se a ordem dorme acordo bulicioso / e devagar comprimo palavras e conheço-lhes / toda a descompressão / e sentido» (p. 38-39). Repetem-se imagens: a da «sólida solidão», a do poeta como «afundador de diques». São boas imagens. Pena é que, por vezes, se percam numa poesia que funciona mais como uma espécie de lenga-lenga para adultos. Eu gosto de lenga-lengas, assim como aprecio «o absurdo movimento circular» de certos poemas. Mas há humores que não têm graça e que, por vezes, embaçam o riso.

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