terça-feira, 26 de outubro de 2004

PIPA CLUB

Ninguém consegue controlar o que os outros pensam de si. Nem vale a pena o esforço. É impossível determinarmos a forma como os outros nos olham. Ponto final, parágrafo.

Há pessoas para as quais a nossa indiferença se transforma numa prova espantosa de amizade. Por outro lado, muitas vezes trabalhamos os nossos comportamentos tendo em vista a estima de alguém que admiramos e o retorno que recebemos do nosso esforço é a mais cruel das antipatias. É a mais inviolável das leis da vida: não podemos controlar aquilo que os outros pensam e nós. Podemos ser o mais autênticos possível, podemos ser espontâneos, podemos ser nós próprios - mesmo não sabendo aquilo que somos (uma pessoa só é ela própria se não souber aquilo que é) -, e, no entanto, aquilo que os outros pensam de nós pode ficar a milhas do que somos na realidade. Por mais que matutasse, nunca consegui perceber por que inextricável razão o porteiro do Pipa Club não ia com a minha cara. Remoinhei a mioleira vezes sem conta, à procura de razões que justificassem a sua clara falta de afeição. Perscrutei afincadamente as causas daquele rancor. Digo rancor, porque assim me parecia. Mas nem sei se era rancor. Como pode alguém saber o que está por detrás do carácter manifestado por um indivíduo? Talvez ele soubesse de alguma coisa sobre mim que eu próprio desconhecia. A verdade é esta: nunca fui capaz de o interrogar sobre isso. Há pessoas que se curvam e recurvam pela consideração dos outros. Eu sou demasiado orgulhoso. Não consigo ter esse tipo e comportamentos. Só sei que somos um repertório infindável de apetrechadas conjecturas. Julgamos os outros permanentemente na base de presunções sem qualquer tipo de fundamento. Ou porque ouvimos dizer que, ou porque nos disseram que, ou porque alguém disse a alguém que, ou porque isto, aquilo, assim, aqueloutro. Resolvi não mais pensar no assunto. Nem valia a pena o esforço. Era impossível. Até que ontem regressei ao Pipa Club e verifiquei que o porteiro era outro. Mandava a lógica das probabilidades que este agora me deixasse entrar e fosse muito simpático e me cumprimentasse com maior ou menor parcimónia. Falso. Manda a lógica que em assuntos de benquerença não haja lógica alguma. O meu amigo M. diz que é da Química. Por mim até pode ser da Física. Mas é lei: o que os outros pensam/sentem de nós é uma coisa, e isso nós não podemos controlar; o que nós somos nem sempre concorda com o que alguns-outros possam pensar a nosso respeito e, a bem da coerência, jamais deverá ser trabalhado em função disso. Isto se o que nós somos pode ser trabalhado. Pois foi dado ao homem o poder de trabalhar ao espelho os rostos de cada dia, mas ainda não lhe foi possibilitado trabalhar a sua natureza por dentro.

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