quinta-feira, 10 de novembro de 2005

ESTE OUTONO SOBRE OS MÓVEIS DOIRADOS

Numa das badanas de Este Outono Sobre Os Móveis Doirados (Edição do Autor, 2005), Carlos Mota de Oliveira é-nos apresentado como autor marginal (segundo palavras de Maria Regina Louro, no Público, e de Luiz Pacheco, no Diário Popular). Não nos é possível determinar se a apregoada marginalidade se refere ao autor ou à obra. É que nisto de marginalidades, tal como noutros territórios, há os que o são do coração e os que o são da razão. O conceito soa bem ao ouvido de certo leitor menos prevenido contra as subtilezas do estilo e, não raras vezes, resulta apenas numa circunstância estratégica, mais ou menos proveitosa, de auto-hetero-promoção. Tenho para mim que os escritores marginais não o são apenas pela excentricidade das suas vidas e, o que mais importa, pela singularidade das suas obras, mas sobretudo pela natureza do seu próprio carácter, natureza essa que dispensa notas de rodapé, anotações bio-bibliográficas de badana, sugestões de distanciamento alicerçadas em panegíricos amigalhaços. E isto não tem nada que ver com poesia, porque a poesia está acima de tudo isto. Ela não é do estilo, é da respiração. Do autor sabemos então que nasceu em Lisboa em 1951 e, segundo reza a estória, «passeou-se [que é já uma maneira de dizer] pela Escola Primária na ilha de S. Miguel, o Liceu em Luanda e Lisboa, a Universidade na cidade de Évora». A distância do meio literário tradicional (qual ele seja!) não dispensa porém os elogios frequentes de diversos escritores. É uma distância, está de ver, originalíssima e irreverente. Publica desde 1973, na sua maioria em Edição de Autor, obras poéticas em nome próprio e com os nomes de Ana de Sá e José Bebiano. O primeiro livro, como outros de circulação limitada, intitulou-se Isabelarcoírisdovinho. Há ainda obras nas casas editoriais Fenda (por exemplo: Ana de Sá, 1982), Teorema (por exemplo: A Poesia de António Arade, 1999) e Caminho (Versículos Sacânicos, 2003). O trabalho que ora nos dói chega-nos prefaciado por Miguel Serras Pereira, em nota íntima, ao jeito de carta, onde se dá conta de «três pontos de partida da pista de leitura»: «a paisagem, que deve ler-se aqui como sendo consubstancialmente histórica», «a morte e o desgaste da carne e do si-próprio paisagísticos» e, por fim, o «tempo reencontrado». Dito de outro modo, esta poesia, de verso telegráfico, lê-se no entrementes da consciência política combativa. Ou seja, o que perpassa nestes poemas é um lirismo decotado com temperos de humorada indignação. Em Meio Milhão de Desempregados o alvo é claro: «(…) Um deputado / não é / uma ninharia // Um deputado / não é / a unha // de um / solípede // um chifre / nojento // um / fumeiro // ou uma loção / para / a sarna! // Um deputado / não é / o pecado original // Um deputado / faz / o ninho // nas / cadeiras // do / hemiciclo // e os / seus ovos // são recolhidos / e / consumidos!” // Ó Amaral / montas / é muito mal! // Enche-te / mas é / de genebra // um / pouco // de noz / moscada // uma casca / de laranja // e toca-nos / ao / bicho! (…)» O recado tem receptor directo, mas parece-me pouco mais do que anódino. Mário Henrique-Leiria fez muito melhor na década de 1970. Se quiserem dar-se ao trabalho, basta compararem as nêsperas de um com as ameixas do outro.

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