sexta-feira, 18 de novembro de 2005

QUI PASSE, FOR MY LADYE

Ao compositor inglês William Byrd (1543-1623), terá Manuel de Freitas (n. 1972) ido colher o título do seu mais recente opúsculo: Qui passe, for my Ladye (edição do autor). Nos últimos anos, a prática do pequeno formato andava arredada dos hábitos editoriais portugueses. Manuel de Freitas retoma-a com alguma insistência: Levadas, Büchlein Für Johann Sebastian Bach, Juxta Crucem Tecum Stare, O Coração de Sábado à Noite, Vai e Vem, são alguns exemplos. Estes livros, com pouco mais do que trinta páginas e menos que uma vintena de poemas (os mais extensos), podem legitimamente sugerir a questão da utilidade desta opção de publicação. Não seria preferível reunir num só volume todas estas sequências? Haverá aqui algum tipo de urgência em publicar, alguma impaciência? Pretender-se-á com isto fazer render o pescado da poesia? São questões lícitas na boca de um qualquer leitor de poesia. Contudo, não é necessário ser mais do que um qualquer leitor de poesia para entender que reunidos num só volume cada um destes títulos perderia a sua singularidade. A verdade é esta: apesar da voz ser a mesma, há circunstâncias que lhe alteram o tom. Qui Passe, For My Lade, por exemplo, nada tem que ver com Vai e Vem, já publicado este ano, a não ser o facto do autor de ambos ser o mesmo. Aliás, o livro que agora nos prende acaba mesmo por ser uma relativa surpresa no contexto da obra de Manuel de Freitas. Os dezanove poemas que o compõem remetem para um destinatário revelado na epígrafe que abre o livro. No poema inicial, o poeta adverte: «É tão difícil escrever um poema / que não fale da morte» (p. 9). A advertência funciona aqui, na mesma medida, como uma espécie de lamento e confissão. O que encontramos nos restantes poemas é um empreendimento que parece ter por fim a escrita de poemas de amor. Porém, logo em Estudos Camonianos a morte intromete-se. E assim sucederá até ao fim. O ambiente desassossegado desta poesia, provém de um lamaçal lírico onde a angústia se confunde com o amor. «Porque isto / que não passa, sabemo-lo bem, é a vida // ou a morte, uma perda que dura / e que não se apaga assim, sob um cerco / de navalhas ou de inúteis, vigorosos / sentimentos. Por exemplo o amor, / essa estranha mistura de angústia, desejo / e novamente angústia» (p. 12). A perda, que o amor não apaga, resulta também do próprio amor. Daí que o amor se revele apenas como um instante de quase felicidade, instante que a morte, única clareza que podemos pretender da vida, apaga. Talvez ilusão da juventude, de um tempo já perdido, o amor acaba por ser apenas mais uma das encenações da morte. Nesta poesia sem saída que não seja a da obsessão permanente com o fim, torna-se quase consolador encontrar no lugar da ruína versos de uma melancolia que, não deixando de ser lancinante, acaba por nos mergulhar numa espécie de sonho romântico: «Pudesse eu de novo beijar os teus lábios / no meridiano azul desse cálice» (p. 27). Bem sei que o romantismo não está na moda (ou talvez já não seja bem assim), mas por vezes ele mostra-se onde menos o esperamos. Lugares outrora frequentados e canções outrora escutadas, polvilham-nos não só a memória mas também o coração. E nesta poesia com a cor da morte (que não é branca), há não só a agrura do edifício em ruínas, a aceleração do quotidiano urbano, o escárnio da vidinha alheada, mas também o adiamento da própria morte «no teu corpo, esse único lugar / onde a noite, às vezes, se detém» (p. 28). É verdade que sem serem sentimentalistas, estes poemas não deixam de ser sentimentais. Haverá porém poesia que o nãos seja? Toda a poesia é afectiva e sentimental. Mesmo aquela que se julga o avesso disso, porque isso não mais é do que o horizonte onde o poeta se encontra com a sua humanidade. Desse fardo, não nos livraremos. Pelo menos, enquanto houver quem escreva poesia.

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