Uma poesia política, não necessariamente partidária, é uma poesia de denúncia. A denúncia não se entende aqui no sentido da delação, pois se esta visa um proveito próprio a outra não pretende outra coisa que não seja desofuscar, tornar claro, (de)clarar os processos de intenção que se escondem por trás da acção. A poesia política só faz sentido se for uma poesia de acção sem intenção ou, melhor, sem outra intenção que não seja a de agir. Outro propósito não se pode exigir a uma poesia do género, sob pena do político se confundir com o propagandístico e, desse modo, deixar de ser poético. A própria expressão, a de poesia política, é aqui usada apenas para facilitar o discurso. Já que, em certo sentido, toda a poesia pode ser política, não deixando por isso o contrário de ser igualmente possível. Deparamos com o busílis da questão: se entendermos que o acto poético é um acto de desocultação, então todo o acto poético é inevitavelmente político; no entanto, caso nos seja mais favorável o campo oposto, isto é, que o acto poético é antes um acto de ocultação, ou pelo menos um acto de encobrimento duma percepção subjectiva da realidade, então o que haja de político na poesia não é poético. Ambos os pólos de pensamento padecem de preconceitos/limitações históricos que urge superar. Um poema é sempre uma fracção crepuscular: dia e noite num só. Isto porque a palavra, entendida na sua essência, é já metafísica, ainda que pela sintaxe se possam lograr representações mais ou menos físicas, sentidos e significados mais ou menos originais. Quer-me parecer que, neste contexto, algo de muito interessante tem vindo a suceder na poesia portuguesa mais recente. Não apenas porque são cada vez mais os poetas crepusculares (no bom sentido do termo, que é, para mim, o único verdadeiramente legítimo), mas também porque têm sido frequentes os livros de poemas de denúncia que conseguem, sem propósitos que não outros exclusivamente poéticos, superar as dicotomias tão vetustas quão ridículas segundo as quais tudo o que é político não pode ser poético. Socorro-me, com o máximo de brevidade, das palavras de Maria Alberta Meneres e E. M. de Melo e Castro na introdução à 3.ª edição da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1971). Traçavam os autores o percurso da antologia da 1.ª à 3.ª edições, quiçá o percurso da poesia portuguesa da segunda metade do séc. XX até ao final da década de 1980: de uma «1.ª edição (1959) [onde] predominava na Poesia um Humanismo Dramático, motivado pela proximidade da Guerra 39/45 e pela realidade nova da ameaça atómica», passou-se ao Realismo Contraditório da 2.ª edição, «que tentava reencontrar um equilíbrio emocional/racional», para culminarmos num Experimentalismo Polivalente pelo qual, segundo palavras de António Ramos Rosa, se valorizava a especificidade do processus poético. Foi precisamente a saturação desse experimentalismo que terá levado Joaquim Manuel Magalhães, numa crónica intitulada Uma geração dessatisfeita (Cf. Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981), a declarar o seguinte: «Tem de haver uma nova geração de poetas para quem o futuro se chame a denúncia deste presente». Não admira por isso que, sob a égide de Magalhães, tenham surgido entre nós na década de 1990 um conjunto de poetas, sem escola nem coito partidário e missionário, cujo propósito parece ser o de denunciar/combater/resistir (a)os anzóis da sociedade de consumo. Valeria a pena dar mais atenção a esse texto programático de Joaquim Manuel Magalhães onde, entre outras coisas, se denuncia a escassez de poetas que, sem o abrigo de metáforas ou francesices, se declarem insatisfeitos. Alguns exemplos paradigmáticos de poetas dessatisfeitos nos últimos cinco anos ou, se quiserem, de livros de poemas da dessatisfação: Todos contentes e eu também (2000), de Manuel de Freitas, Ulisses já não mora aqui (2002), de José Miguel Silva, Em trânsito (2003), de Carlos Bessa, Pontos luminosos (2004), de Jorge Gomes Miranda, Logros consentidos (2005), de Inês Lourenço. Pois bem, neste mesmo sentido parece vogar a poesia de João Almeida agora publicada, em pequeno volume, pela Averno. Desde logo o título, A Formiga Argentina, remetendo para a metáfora operária da formiga. Esta formiga é uma formiga urbana, é também a formiga do conto de Italo Calvino, pois «as pequenas formigas argentinas / são indestrutíveis, pequenos pontos a bulir / mortos diariamente / para voltarem iguais, concentrados / no dia seguinte». (p. 25) Os poemas de João Almeida captam bem a dinâmica dos tempos que correm: produzir para consumir, trabalhar para (sobre)viver, (sobre)viver para produzir. As contradições da vida assim subentendida, uma vida remediada pelo sentido do trabalho, ficam evidentes em vários versos. Mas o que emerge de mais interessante neste breve conjunto de poemas é o princípio seguro da transgressão, com vários envios, através de expressões quase despercebidas ao leitor menos atento, para um imaginário que é o imaginário de um povo educado para a sobrevivência: «para fugir não temos força» (p. 7), «levantei-me como caí» (p. 8), «comprimidos fora de prazo» (p. 10), «esquecimento cada vez mais» (p. 12), «disposta a tudo» (p. 17), etc, etc, etc… Imagens de um vazio regulado pelo despertador, pela lida doméstica, pelo desperdício, pela submissão, pela competitividade em detrimento da combatividade, pela cobardia conformista de um povo (quem é o povo?) instalado em redor de uma televisão com uma árvore de Natal em pano de fundo. Nem o amor nos parece restar, cada vez mais doméstico que é.
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