Conclusão: A Ordem do Mundo, de Rui Coias (n. 1966), é um dos mais originais livros de poesia portuguesa editados este ano. Sina dos “ruis”. Senão veja-se: Longe da Aldeia, de Rui Pires Cabral (n. 1967), e A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, de Rui Costa (n. 1972). Ao contrário de grande parte dos autores da sua geração, Coias opta por uma poesia que eu diria inclassificável. Os prenúncios da obra que agora conhece mais um tomo, notaram-se pela primeira vez, se bem sei, há 8 anos (Cf. Hífen, n.º 10 – anos noventa (alguns poetas) -, direccção de Inês Lourenço). À época, o autor assinava com o nome de Rui Penote Coias e revelava algumas das suas “predilecções”: Yeats e Eliot. O primeiro livro surgiu naturalmente, e com o aplauso de alguma crítica, dois anos depois: A Função do Geógrafo (Quasi Edições, Dezembro de 2000). Salta à vista, na poesia de Rui Coias, a extrema organização das suas duas colectâneas publicadas. Mais ainda neste A Ordem do Mundo, onde ao facto dos poemas aparecerem de forma sequencial se junta agora uma homogeneidade formal que não era tão rigorosa em A Função do Geógrafo. Verso extenso, poema mais ou menos longo (no mais, cerca de 50 versos; no menos, à volta de 15 versos), primor e minúcia no uso da linguagem, um certo pendor para o prosaísmo que aqui nunca se confunde com confessionalismo ou mera descrição quotidiana. Neste sentido, a ser alguma coisa, a poesia de Rui Coias é uma poesia paisagística. Mas atenção: estas paisagens, repletas de motivos naturais/geográficos (árvores, encostas, estações, etc.) não são tanto descrições de quem olha para fora como parecem ser «esse rosto de quem batendo se enganou na porta / se porta nenhuma procurava, mas a ele mesmo» (p. 43). Há também «as vistas suburbanas, ali caídas qual pão torrado, / em quarteirões desacompanhados, a parecerem sanatórios», mas esses lugares são apenas “o que olhamos neles”. Em diálogo consigo próprio, o poeta remete-nos assim para uma espécie de fio condutor da sua poesia: o poeta à descoberta de si, à procura da ordem do mundo, uma ordem que parece ser a de um tempo que dita a hora do regresso e da partida das "coisas". Memória e esquecimento aparecem assim como fluidos de um só sistema, onde a memória nos serve apenas «para não esquecer que à morte basta cortejar-nos, / tocar-nos na apatia de um vento frouxo, / e que noutro lugar ou aqui, com outro nome ou começo, / a regressar e a partir definitivamente, / vamos apurando a ordem do mundo» (p. 31). Por isso se intrometem nos versos palavras de outro tempo, num vocabulário riquíssimo, por vezes clássico, outras vezes até arcaico. Lameiros alternam com lamaçais, à palavra odor o poeta prefere a forma olor, rasto vem escrito rastro, no que seria natural escrever-se assim Coias escreve destarte. A riqueza vocabular desta poesia, que por vezes a torna difícil, embora não inacessível, logra dois efeitos: enviar-nos para um tempo tão distante quão presente, na mesma medida em que recupera e (re)actualiza o passado. Aliás, o remate do primeiro poema desta colectânea é exemplar: «nada nos é dado alicerçar ao que da vida passa, e se extingue, / senão o que do passado, na fresta de pó, vem a todos fraquejando» (p. 7). Torna-se menos interessante esta poesia quando resvala para um tom quase profético. Isso acontece em alguns poemas finais, nomeada e explicitamente no poema 25: «Já não tarda o novíssimo tempo - / quando não mais chegar o desejo inspirador, / quando não mais entre mãos nos perdoarmos, / quando soarem em carcóvia os carrilhões, / se nada ofuscar na hora solitária, / quando for mais tarde – for mais tarde» (p. 45). Ainda que as profecias não anunciem nada diferente do vaivém daquele que andou, fez, foi, viu, aceitou, descobriu (cf. poema 16) para de novo partir. Vem-parte-volta: é o itinerário que se enuncia e profetiza nesta poesia original, meticulosa, delicada e laboriosa de Rui Coias. P.S.: excelente capa.
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