Passado quase um ano sobre a data de publicação (Fevereiro de 2005), pego neste 47, de Vaco Gato (n. 1977), opúsculo em edição caseira numa tiragem de 300 exemplares (os do costume). Autor de três livros a ter muito em conta (Um Mover de Mão, Assírio & Alvim, 2000; Imo, Quasi, 2003; A Prisão e Paixão de Egon Schiele, &etc, 2005), Vasco Gato é uma daquelas vozes cuja obra poética se esquiva a qualquer catalogação mais ou menos (in)congruente. Além dos três livros supracitados, há ainda a referir um outro opúsculo datado de 2003: Lúcifer, Alexandria. Em 47, título enigmático, deparamos com um poema longo, tendo em conta as práticas contemporâneas, onde um outro feminino está em permanente evidência. Esse outro é reportado de múltiplas formas, visando elementos físicos e espirituais: «o teu nome», «a tua canoa de silêncios», «o teu rosto», «os teus cabelos», «o teu desaparecimento», «o teu fantasma», «o teu cemitério», «as tuas mãos», «o teu corpo», «os teus olhares», «a tua voz». A insistência em termos que remetem para um desaparecimento, levam-nos a pensar numa situação interrompida. É evidente tratar-se de um poema de amor - «O amor / -pirâmide, o amor-trevo-de-quatro-folhas, o amor-moeda- / -achada-no-chão» (p. 12) -, mas esse amor é um amor que fica sempre por decifrar nas pistas que os versos vão deixando. Sabemos que o tu ao qual se dirige o poema está ausente, não sabemos em que se consubstancia essa ausência. Se, por um lado, somos levados a crer numa separação definitiva, por outro lado o termo do poema faz-nos crer num qualquer tipo de contacto possível entre o que desapareceu e o sujeito que espera, numa espécie de limbo, pelo momento de deixar de esperar: «Tu não precisas oferecer-me / portas e milhares de portas, basta que apareças» (p.15). O aspecto mais interessante da poesia de Vasco Gato reside precisamente num registo linguístico com extensões manifestas à própria forma dos poemas, onde o reflexivo convive naturalmente com a inclinação lírica. Em certo sentido, este e outros poemas do autor lembram-nos universos poéticos distantes através dos quais o mundo se reflectia no poema, não enquanto descrição subjectiva do mundo, mas como lugar de encontro do poeta com o mundo. Neste caso específico, o amor parece encontrar-se com a morte. Da experiência desse encontro, brota, então, uma ontologia mínima com repercussões bem concretas: «Porque nós estamos aqui. / Aqui onde te entrego os meus bolsos, / e –repara – as tuas mãos cabem. // Nós estamos aqui. (…) // Nós estamos aqui para arder pelo nosso corpo completo. (…) // Nós estamos aqui para fugir, nós estamos aqui para chegar / de vez» (pp. 14-15). O sentido do estar aqui é uma fuga com final definitivo: a morte. O tipo de fuga, ou de fugas, que nos levam a esse porto onde chegamos de vez resulta numa fusão, num encontro, que pode ser pautado de diversas formas. Tal como para Jorge de Sena, os contrários são para Vasco Gato «mais complexos do que a aceitação oportunista de maniqueísmos simplistas». A transfiguração que se opera nesta poesia coloca-a, a meu ver, no lugar das poesias completas, onde a imagem e o som das palavras não são distintos dos objectos a que estas se referem. Ou seja, uma poesia onde aquilo a que é costume dar o nome de real é, mais do que precariamente condensado, ampliado pela própria poesia.
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