Quantos cigarros já terão sido acendidos na moderna poesia portuguesa? Gesto estilizado por excelência, o acto de acender um cigarro, quando passado à escrita, pode querer dizer muita coisa e pode não querer dizer nada. Em Falsa Partida, de Fernando Luís Sampaio (n. 1960), «um cigarro basta para / aguentar o tremor da vida» (p. 23), seja ele um «cigarro matinal» (p. 28) ou aquele que «faz sempre falta / a versos assim, uma espécie de laço com os / sonhos que se esfumam, / um sinal de salvação na selva escura» (p. 61). Falemos de cigarros. Quem fuma sabe bem o quão difícil é largar o vício. Quase como quem ama saberá o quão difícil é deixar de amar. Ao cigarro, como ao amor, voltamos sempre. É sina das nossas fraquezas, tanto quanto da nossa coragem, porque retornar ao que se abandonou, assim como voltar a acolher o que nos deixou, não pode ser medido pelos pólos que configuram as éticas do ocidente. No primeiro conjunto de poemas que compõem Falsa Partida (repare-se na justeza do título), começa logo o poeta por perguntar: «Queres mais coragem do que esta?» (p. 13) O poema, construído em círculo, com os mesmos versos reaparecendo nas estrofes seguintes, em rodopio, como uma «espécie de porta / giratória» (p. 27), prepara-nos precisamente para uma confrontação, prosseguida no decorrer do livro, entre a ideia de partida e os regressos que fazem das partidas meras falsas partidas. «Adeus, puta, adeus» (p. 13) - assim termina o primeiro poema do conjunto intitulado Epicentro, homónimo de um outro poema onde tudo se explica: partidas, reencontros, «baralhar e dar de novo» (p. 24). Poemas pejados de dúvidas inquietantes e desassossegadas sobre a natureza do amor, melhor dizendo, sobre a natureza da «vida a dois» (título de poema na segunda parte: As Ondas Frias do Atântico). O poeta não esconde nada, desvela-se sem pejo e, por vezes, de forma brutal. A coragem está em resistir ao fingimento, denunciar as traições, assumir as dúvidas, dar lugar a um esquecimento que está por vir (talvez no poema), recordar, trazer de novo o que já foi, o que partiu, o que desertou, não temer o confronto com a memória dos equívocos, da infidelidade, das armadilhas do coração, voltar a dar voz, quase em registo de purgação, aos demónios que povoam, quais punhais, o peito daquele que se despede. Aqui o amor é mais dos espinhos do que das pétalas, mas é principalmente de um destino marcado pelo ritmo pendular do tempo, por esse vai e vem marítimo que se assemelha ao sol que se põe para de novo nascer. Não há por isso pessimismo nem optimismo nestes versos de Fernando Luís Sampaio, não há dicotomias improváveis, não há maniqueísmos de carácter fatalista, não há destinos sem saída. Há antes As Ondas Frias do Atlântico: «Agora que deixas a paisagem vazia, / como se toda ela engolida / por uma avaria da natureza, / sinto-me sem mais préstimo / para o remate do enredo. // Quantas vezes não é partida / esta cena sem imaginação! // De quem a culpa?, tua, minha, / do torcionário afecto? Sei / que partes a paisagem em / minguantes – o que levas, / o que comigo sem ti fica. // Com ela assim repartida / colo as deixas com cuspo, / a voz do que nada resta, e creio / que neste lugar sem harmonia, // com as marcações trocadas, / ficarão passo a passo os nossos erros, / traições e a teia do infinito destino / sob as ondas frias do atlântico» (p. 49). Versos memoráveis, estritamente medidos palavra a palavra, onde os jogos semânticos (partida: acto de partir, brincadeira, guerrilha, do verbo partir, quebrar, separar) flúem quase sem darmos por eles. Ideais como terapia para dores de corno, estes poemas são do melhor que tenho lido na moderna poesia portuguesa. Forma e conteúdo na exacta proporção, lêem-se com prazer na companhia de um cigarro. Voltemos a falar de cigarros, do fumo que se trava na garganta e nos mancha o pulmão. Do pulmão onde se geram todos os poemas dignos desse nome. Poemas com lugares dentro, poemas dentro de lugares, poemas com memórias e memória, poemas com gente que respira no seu interior, poemas que respiram como gente, poemas que vibram e que apaziguam, que relembram para esquecer. Poemas com frames, em looping, que não precisam dormir para sonhar, que não precisam sonhar para adormecer. E voltar a acordar.
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