Será que ainda vou a tempo? Claro que sim. As coisas de valor não se perdem no tempo, já que «os valores são consistentes». O primeiro número da revista Intervalo surgiu no primeiro semestre de 2005. Ainda não dei pelo segundo número e como só agora pude terminar o primeiro, cá vai. Co-editada pela Vendaval e pela Diatribe, a «Intervalo propõe-se como uma revista de pensamento da actualidade». Editores, são quatro: Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos, Olímpio Ferreira e Silvina Rodrigues Lopes. Do índice ressalta o carácter multidisciplinar: pintura, arquitectura, literatura, cinema… Cada número pretende submeter-se a um tema genérico, no caso presente O Valor, embora a postura dos colaboradores não seja submissa ao tema em foco. São eles Luís Henriques (Endurance: o valor da duração da pintura), com um ensaio onde se procura ler a pintura de Andy Warhol à luz da doutrina estética de Walter Benjamin (figura quase omnipresente nos ensaios apresentados ao longo este primeiro número). Manuel de Freitas (Acima de nada – Uma leitura caótica de «Perre d’auréole») elabora uma leitura, datada de 2002, dos poemas em prosa de Charles Baudelaire, sublinhando a declinação do resplendor na poesia ocidental em favor de uma poesia que se afirma de resistente «à mais-valia do Pior». Mariana Pinto dos Santos («It’s pretty, but is it art?») assina um interessante ensaio sobre a arte da falsificação onde cruza o cinema de Orson Welles com alguns aspectos bastante curiosos da arte contemporânea. A pergunta central é colocada desta forma: «por que é que um quadro falso, se bem feito, não há-de valer o mesmo que um original?» Trata-se, julgo eu, de uma questão cada vez mais pertinente, dado inclusive os desafios a vários níveis que as novas tecnologias colocam ao artista contemporâneo. O ensaio de Mariana Pinto dos Santos é uma excelente proposta de reflexão que, só por si, vale o contacto com esta revista. Segue-se Silvina Rodrigues Lopes (A volta do mar) com um texto que poderia servir, digamos assim, de síntese para o estabelecimento de uma linha geral de pensamento sobre a forma como se aborda aqui o problema do valor: «o valor da literatura, e da arte, está (ou também está) em ensinar-nos a não ser niilistas, isto é, a não ser conservadores diante da injustiça». Para o final, um texto crítico de Hal Foster (Mestre Construtor) sobre a obra de Frank Gehry, uma entrevista ao filósofo Philipe Lacou-Labarthe, autor, entre outros, de Textos sobre Hölderlin (Vendaval, 2005), da qual guardei duas proposições para reflexão futura: «É a regra de toda a literatura: escreve-se sempre a partir de alguma coisa que já foi escrita»; «A arte é sempre a invenção de um impróprio, para chegar a uma apropriação». Há ainda uma proposta de leitura equilibrada de O Silêncio dos Poetas, de Alberto Pimenta, por Marco Alexandre Rebelo, e outra de État d’exception – homo sacer II, de Giorgio Agamben, por José Paulo Pereira. Dito isto, seria de esperar que o primeiro número da revista Intervalo já tivesse esgotado nas bancas das livrarias de jeito deste país. Como duvido que tal tenha acontecido (o que não é de todo improvável), deixo então aqui registado o meu agrado a ver se alguém morde o anzol como eu outrora mordi. A fechar, uma breve nota em tom mais particular: a sensação final com que se fica após a leitura destes ensaios é de desconforto. Principalmente porque todos eles resvalam numa tendência ensaística portuguesa da qual dificilmente nos libertaremos: a de nos ocuparmos demasiado sobre obra alheia. Seria interessante, mais ainda numa revista, que o pensamento de cada um dos seus colaboradores não fosse tanto o que eles pensam sobre a obra dos outros ou, nos melhores casos, o que das obras dos outros lhes serve para pensarem o mundo como poderia antes ser o que sobre o mundo se pensa para que ao mundo se fizessem chegar novas propostas. O valor reside também aí: nos processos a partir dos quais ele se questiona, reflecte, conceptualiza.
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