Nas páginas iniciais de O Ofício de Viver, Pavese coloca uma questão sempre pertinente: «Será que uma página da Divina Comédia perde o valor intrínseco de nota de um todo, se for separada de um poema ou deslocada?» A dúvida surge no seguimento de uma reflexão acerca da organização dos livros de poesia. Temos livros cujos poemas estão em permanente conexão uns com os outros, tornando quase catastrófica, para o valor da obra em si, a fragmentação do todo. Por outro lado, há livros que se lêem como meros conjuntos de poemas ou, noutra das hipóteses, enquanto reunião de duas ou mais sequências entre as quais poderemos estabelecer ligações congruentes. Acontece que no acto da escrita, parecendo ser essa a verdadeira dúvida do poeta italiano, os poemas vão muitas vezes surgindo sem que seja possível determinar previamente o seu «significado profundo». Daí que Pavese conclua: «O cancioneiro-poema é sempre uma after-thought». Não sei se deva concordar, pois por vezes existiem obras cuja unidade tem na sua origem uma linha de pensamento e expressividade definidas a priori. Pode haver hoje quem veja nesse mecanismo de pendor mais clássico uma negação da dimensão espontânea do discurso poético. A acontecer, não será certamente na poesia de Jaime Rocha (n. 1949). Lacrimatória, o seu mais recente livro de poesia, deve ser assim chamado, de livro de poesia, em oposição aos livros de poemas que proliferam entre nós. Rareiam os poetas que insistem neste tipo de volume assim tão estruturado. O exemplo de Jaime Rocha é, na minha opinião, dos mais conseguidos. Poeta aparecido em livro em 1970, com o título Melânquico, tem construído ao longo dos anos uma obra multifacetada de exemplar rigor formal e extraordinária coerência. O "livro-poema" que agora nos chega prossegue esse itinerário de excelência. Digo "livro-poema" precisamente com o intuito de sublinhar o carácter de unidade geral constituinte da marca principal desta obra. Temos que Lacrimatória lê-se como um longo poema onde cada fragmento surge como uma parte de um todo cujo significado final não se resumirá apenas à soma de todas as partes que o compõem. Influenciado pelo labor de Jaime Rocha enquanto dramaturgo, provavelmente o mais reconhecido, arriscaria ler Lacrimatória como uma espécie de longo poema trágico, de cariz simbólica, sobre os ritos de passagem associados à morte. Temos um jogo de personagens, assim chamadas a páginas 43, que colocam no centro do drama um homem e o corpo da sua mulher (morta). Ao ritual da morte corresponde aqui uma viagem - à semelhança do que encontramos, por exemplo, nas mitologias grega e egípcia -, onde pelo meio se nos atravessam pelo caminho corvos, anjos, fantasmas, figuras e locais mitológicos, pedreiros, cavaleiros, entre outros, numa trama de comparações imensas, metáforas e envios. É claro que o leitor é tentado a decifrar as pistas que vão sendo deixadas pelo caminho. Dificilmente deixaremos de ver um cemitério na ilha para a qual o homem leva o corpo da mulher, «uma ilha em ruínas, ladeada por / rochedos acastanhados pelo tempo, escondida / entre altos ciprestes» (p. 20); assim como poderemos ver um coveiro no pedreiro que chega ao túmulo depois da cerimónia: «Depois aparece um pedreiro com uma espátula e / começa a tapar os buracos comidos pelo tempo. As / suas mãos parecem ganchos. Traz cordas penduradas / nos ombros e uma grande caixa com ferramentas. Há / um fulgor naquele encontro entre o casulo e o pedreiro, / uma luz que se vira para o mármore, seguida de um / som fino» (p. 26). No entanto é preciso dizer: mais do que sobre a morte, este é um livro sobre o sofrimento e sobre a dor associada à morte, isto é, sobre o ritual do abandono, da convivência com o ausente. O que está quase sempre em evidência é a dor do homem, o seu «peito destroçado» (p. 37), as suas «lágrimas vazias» (p. 51), o seu choro e o seu desespero. Porque acerca da morte, Jaime Rocha diz tudo o que há para dizer num simples mas memorável verso: «Não / há espaço para o amor, tudo vive colado à morte» (p. 57).
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