domingo, 26 de fevereiro de 2006

DOIS LIVROS MORTOS

Associo-me a esta causa de valter hugo mãe, propondo dois livros publicados pelas Edições Mortas: morte com dedos em ferida (2000), de m. parissy (n. 1969), e Excrementos (2002), de A. Dasilva O. Na verdade, não sei ao certo se os dois títulos ainda se encontram disponíveis. O primeiro, foi-me oferecido pelo autor há dois anos. O segundo, adquiri-o numa livraria do Porto, salvo erro, chamada Utopia. Não são os únicos livros das Edições Mortas que possuo, mas são dois que me agradam por razões bem distintas. No caso do livro de m. parissy, temos dois conjuntos de poemas, o que dá título ao livro e um outro intitulado levas de mar, que, como é apanágio deste autor, podem ser lidos, cada um dos conjuntos, como sendo dois únicos poemas fragmentados em várias partes. O primeiro fragmento de morte com dedos em ferida é revelador do género de poesia praticado por parissy, uma poesia com múltiplas referências a um imaginário geográfico muito pessoal, nomeadamente no que respeita à presença daquilo a que eu chamaria uma “signografia marítima”, assim como uma espécie de conflito entre os ritmos da cidade e os ecos da memória. Ainda assim, resistem estes versos a um pessoalismo de tipo confessional e realista tão em voga nos dias de hoje. Ou seja, a memória está presente sob a forma disfarçada de um fôlego poético que parece mais da ordem da imaginação do que das ordens da observação e da rememoração. Não obstante, estes poemas possuem outros epicentros que não apenas o da imaginação. Eles apresentam-se-me como resultado duma confluência, por vezes dispersiva, do real com o imaginário, dos afectos com os efeitos, da desilusão com a ilusão: «eu quero imaginar o amor em ti / pelo menos sei a morada // a mãe do porteiro guardou / saudades e vícios // a borboleta pede licença para entrar / os cristais não deixam» (p. 7). Esta é uma poesia onde tudo parece aparente, uma poesia que nos vai deixando rastos e rastilhos, amiúde alucinatórios e delirantes, sobre o inexplicável: «os versos / são feitos de coisas inexplicáveis» (p. 8). Mas é também uma poesia que dá lugar às vozes do explicável, sejam elas «a mãe do porteiro», «o carteiro», «a padaria», a «taberna», «as vendedeiras de tabaco», ou seja, personagens e imagens de um património concreto que, retratados no poema, assumem contornos mais abstractos. Bem menos abstracta, assim aparenta, é a poesia de A. Dasilva O., autor de alguns dos livros mais iconoclastas de que há memória em Portugal. Se o título Excrementos não chegar para convencer, raparem em alguns dos títulos de poemas que compõem esta colectânea: Assim Fodeu Zaratustra, Ode a Coisíssima Nenhuma, Dança do Quinto Caralho, Ide Mamar na Quinta Pata de Heidegger, Striptease de Pã. Sem fazer quaisquer cedências às concepções mais estereotipados de belo, esta é uma poesia que se afirma precisa e mormente por desprezar o Belo. A dimensão política (de cariz anarquista), senão mesmo panfletária, é evidente na toada acusatória que vislumbramos em alguns poemas – sejam eles mais ou menos satíricos, mais ou menos violentos: «Não sei quantas pessoas morreram em Sarajevo / Desde que comecei a escrever este poema / Impossível / Impossível porque desde Auschwitz / Continua a ser possível / O poema impossível» (p. 54). É óbvio que há nisto tudo uma pose anti-cultura voluntáriamente provocatória, mas é uma pose de facto, não se lhe podendo extrapolar a autenticidade. Os poemas mais eficazes, quanto a mim, são os mais breves. A brevidade torna-os mais incisivos, ao passo que nos poemas mais longos perdem-se corrosibilidade e energia. É como se no alongamento das estrofes e dos versos o ímpeto, conceito não necessariamente romântico, se perdesse em favor do jogo linguístico e de uma vertente lúdica menos espontânea e, por isso, mais desinteressante. Resta dizer que estes excrementos de A. Dasilva O. foram sendo largados, ao longo dos anos, pelas páginas de várias revistas (Bíblia, Canal, Vértice, aguasfurtadas, etc.). Reuniram-se neste livro, para gáudio dos leitores de poesia mais corajosos e menos preconceituosos.

Sem comentários: