quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

QUE COMBOIO É ESTE

O Teatro de Vila Real, na profusão de actividades que vai levando a cabo, aventurou-se o ano passado na edição de livros de poesia. Não sei se já antes o havia feito, mas julgo ter sido Jukebox, de Manuel de Freitas (n. 1972), o primeiro livro a aparecer com o novo selo desta instituição. De outra geração, mas com afinidades evidentes ao poeta-crítico-editor Manuel de Freitas, é A. M. Pires Cabral (n. 1941). Deste último é o segundo volume de poemas a aparecer com edição do Teatro de Vila Real. Que Comboio é Este, datado de Dezembro de 2005, reúne um módico conjunto de poemas (19) em torno do mote sugerido na expressão do título. À semelhança do que já acontecia em livros anteriores deste autor, como, por mero exemplo, em O Livro dos Lugares (vide sequência Desta Água Beberei, 1999) ou, em aparição mais recente, na sequência em torno de um poema de Rainer Maria Rilke publicada no n.º 3 da revista Telhados de Vidro (Novembro de 2004), retoma-se aqui o modelo da cantiga camoniana, ainda que em verso livre e, por isso mesmo, conflituante com os esquemas métricos da tradição lírica portuguesa. Esta é, de resto, uma das marcas essenciais da poesia de A. M. Pires Cabral, ou seja, a forma como a tradição pode ser permanentemente reequacionada sem que com isso se perca qualquer lampejo de modernidade. No entanto, ao contrário de outros poetas portugueses, mais ou menos novos na idade, esta «recuperação da linguagem poética clássica», como outrora lhe chamou Joaquim Manuel Magalhães, não se exerce através da (re)construção de um vocabulário arcaico nem por uma intertextualidade tantas vezes desavergonhadamente ardilosa. Em termos vocabulares o que temos é uma depuração ao limite de uma linguagem que, sendo simples, nunca se torna simplista. O tom é, assim, de uma simplicidade extrema, à qual se alia uma concisão que, ao contrário de um certo laconismo expressivo em voga, nos leva a crer estarmos perante o essencial e nada mais do que o essencial. Note-se como logo no poema de abertura, aquele que dá título ao livro e à volta do qual toda a sequência se organiza, somos introduzidos na viagem que o poeta nos propõe sem sermos sujeitos a qualquer eivo de desnecessária sentimentalidade: «Que comboio é este que me leva / entre sobressaltos e tumultos / em visita ao miolo da noite // - até ao seu mais fundo patamar / onde a própria memória / dos dias estagnou / e já é só um charco de si mesma, / e já não se ouvem rãs, mas choro e / ranger de dentes. // Que comboio é este, que viagem, / que galáxia por destino» (p. 7). O comboio, que aqui tanto pode ser metáfora da vida como da idade, do tempo como do mundo, do sonho como da realidade, ficará ao dispor do leitor enquanto metáfora que a leitura cumprirá. Há, no entanto, alguns aspectos menos interessantes neste livro. Refiro-me, sobretudo, a um humor por vezes demasiadamente previsível e, digamos assim, sem graça (é disso exemplo o poema Retretes), mas também a uma inclinação “filosofante” que raramente logra ir além – mesmo não sendo essa a intenção - do lugar-comum: «Sou um passageiro. // Isto em bom português / quer dizer: estou de passagem. / Virá um dia em que caduque / a minha validade. / Só o comboio é perene, / inextinguível» (p. 23). A sabedoria popular tem muito que se lhe diga, ainda mais pelo que deixa por dizer.

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