terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

RESTOS DE QUASE NADA

Qualquer leitor de poesia mais atento já terá reparado no namoro de Manuel de Freitas (n. 1972) à obra de António Manuel Couto Viana (n. 1923). O quase meio século que separa os homens, não tem sido obstáculo às pontes, aqui e acolá evidentes, entre as respectivas obras. A propósito do autor de O Avestruz Lírico (1948), uma breve história pessoal. No meu ano de estágio fui apresentado à obra de Couto Viana pelas mãos do meu orientador. O juízo, decorria o ano e 1997, lembro-o como se fosse hoje: «Grande poeta, mas fascista». Aquela metade final da asserção deixou-me sempre um nó na leitura. Deverá um poeta ser lido pela sua “grande poesia” ou pelas suas inclinações política, ideológica e idiossincrática? E, já agora, alguém que me explique que coisa essa de poeta fascista que eu não sei. Assim como nunca soube do poeta comunista, esse onde o cartão pesaria sobre a obra a ponto de a espalmar e a gente não a ver mais. Creio que a política do poeta-poeta apenas pode ser uma, mais ou menos conservadorismo, mais ou menos saudosismo, mais ou menos sebastianismo: refiro-me, claro está, à política poesia. Assim como assim, ele há tanto fascista encapotado em trejeito de modernidade que o leitor fica sem saber o que pensar quando em confronto com categorizações abstrusas deste tipo. Voltemos ao namoro. Reparámos nele nas páginas do suplemento cultural do jornal Expresso, aquando duma recensão, mas também na revista Telhados de Vidro (vide números 3 e 4) onde sete dos poemas inclusos na primeira parte deste Restos de Quase Nada e Outras Poesias haviam anteriormente sido publicados. Refiro-me, mais concretamente, aos poemas Lá Para o Fim, Poética, Malefícios da Velhice, Idade, Relâmpago, Confissão Pública e Saudades do Que Não Fui. Temos assim um pequeno livro, mais um de uma vasta obra premiada e reunida a espaços, organizado em duas partes. A acompanhar os poemas, desenhos de Juan Soutullo; a abrir a colectânea, prefácio (com dedicatória) do editor: «Num momento em que certa Crítica pressupõe o inverosímil renascimento de uma estética «neo-realista», afigura-se-me aliás oportuno recordar que devemos a António Manuel Couto Viana uma das mais célebres e veementes recusas do que, por compreensível eufemismo, se autodenominou neo-realismo» (p. 5). Eu diria que a intenção desviante, de tão óbvia, não cai bem no prefácio. A não haver de facto um renascimento de uma estética «neo-realista», não me parece nada congruente servir-se desta poesia um dos apontados nesse renascimento como forma, ainda que enviesada, de denegação desse mesmo renascimento. Alhos nada têm que ver com bugalhos. Não obstante, numa coisa ligam-se as duas estéticas, a da poesia de Couto Viana e a da poesia dos (quanto a mim preguiçosamente apontados) novos neo-realistas. Falo daquilo que também fala Manuel de Freitas no prefácio: «sóbria e certeira capacidade de denúncia» (p. 9). Palavra chave em poetas ditos novos (queira lá isso dizer o que quiser), a atitude de denúncia é o que demarca o campo de acção de parte da poesia que recentemente vem sendo publicada entre nós. Em António Manuel Couto Viana isso acontece, verdade seja dita, há pelo menos 50 anos. Com todos os seus particularismos, o sebastianismo que irrompe em alguns versos deste poeta é sinónimo mais do sentimento de um «paraíso perdido» (p. 19) do que de um paraíso (improvável) por construir. Em Restos de Quase Nada vislumbramos a auto-ironia de sempre, aqui lançada com mais insistência sobre o tema da velhice. Note-se, por exemplo, na primeira e última estrofes de um memorável poema intitulado Saudades do Que Não Fui: «Saudades da boémia que não sei: / O excesso de bebida. O charro. / (Eu sempre fui respeitador da lei, / Mas de barro. // (…) Saudades a exigir ao velho / A vertigem da fuga. / (Mas não se pode destruir, no espelho, / A ruga.)» (p. 24) Trata-se, dirão, de um poeta a contas com o destino, de um poeta em retrospectiva, na oitava idade de Erikson, avaliando o para trás na iminência do fim: «Estou na lista de espera / Para a consagração. / Quem espera desespera? // Por aguardar, não desespero, / Ciente que virá tarde. / Nunca quis mais do que zero. / Detesto alarde» (p. 34). Contas feitas, direi: formalmente rigorosa e elevada, esta poesia vinga sobretudo como lição de fidelidade absoluta a uma certa maneira de se ver o mundo a partir do olhar que se tem sobre si próprio. Do poeta à pátria, vai a dor de uma ferida por sarar. Para mim, cá vamos indo: melhor do que fomos, pior do que seremos. Mas que sei eu disso?

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