domingo, 12 de fevereiro de 2006

OS DIAS NÃO ESTÃO PARA CORAÇÕES PARTIDOS

Os dois livros de poesia que inauguram a editora Livramento, Os dias Não Estão Para Isso e Heartbreak Hotel, respectivamente de Nuno Costa Santos (n. 1974) e Alexandre Borges (n. 1980), manifestam relações entre si que não ficam somente pelo aspecto gráfico. A distingui-los, está, à partida, a extensão dos poemas. Mais longos, no caso de Alexandre Borges, mais breves, no caso de Nuno Costa Santos. Aparte esse pormenor, os defeitos e as virtudes dos dois livros podem ser interpretados de modo similar. Ainda que nada nos informe acerca disso, Os Dias Não Estão Para Isso colige poemas anteriormente publicados no weblog melancómico, na sua grande maioria entre os meses de Junho e Julho de 2005. A divisão do livro em quatro partes temáticas (Para os queixumes; Para os outros; Para os afectos, memórias; Para os conselhos), permite perceber algum esforço na organização. Esforço esse, quanto a mim, perfeitamente conseguido. Há poemas, porém, que não fazem muito sentido aqui. São poemas de tipo aforístico, onde o verso se transforma em prosa e a acção os faz resvalar na micronarrativa. Exemplos disso podem ser Um homem parado na pista, Andar às codornizes, Duas notícias sem relação, entre outros. Bem sei que as epígrafes de Fernando Assis Pacheco, Alexandre O’Neill, Raymond Carver, não deixam espaço para grandes dúvidas. O que se trabalha nestes poemas é a "ninharia", a economia discursiva, o prosaico, um certo absurdo tão ao gosto do humor mais melancólico. Mas a questão que coloco é de outra ordem: a fazer sentido a inclusão desses poemas, dezenas de outros aforismos do mesmo autor poderiam também constar no mesmo livro. Daí que me pareçam excessivos ao lado de textos poéticos mais ou menos conseguidos, onde a quebra de verso imprime a cadência poética (sem desprimor do prosaico). Naturalmente, é nos poemas que não podem ser outra coisa senão isso mesmo que a poesia de Nuno Costa Santos melhor se revela. Por exemplo, no poema que dá título ao livro: «Cansado do ranço dos meses horizontais / sinto falta disso / a que se convencionou / chamar a transcendência // não / não é vontade / de visitar os templos // continuo a preferir uma relação sem interposto / à maneira de Kierkegaard (e dos indolentes) // quinze minutos de leitura / um passeio / a história de alguém / podiam ajudar // os dias não estão para isso // então / chegada a noite / rezo com demasiada pressa / a oração que minha mãe / me ensinou em segredo / à beira da cama / e então posso voltar / plano como o tempo / à intermitência do sono» (p. 18). Também Heartbreak Hotel enferma de alguns excessos similares, conquanto as tonalidades poéticas sejam, pelo menos em aparência, distintas. Neste caso, o que há em excesso são algumas imagens vulgares - «gotejar da chuva dos beirais» (p. 12) e «ténues gotículas já secas» (p. 19) -, certos efeitos discursivos demasiado previsíveis - «(Não me trates assim, não notes em mim, / não toques, não notes, não noites, não deites / promessas de hoje aos erros de agora)» (p. 12) ou «as derrotas que tive / nas guerras a que não fui» (p. 26) -, comparações redundantes, como, a título de exemplo, esta: «no mar mora a chuva que não chegou a chover / como na terra o fogo que não ardeu» (p. 36). No entanto, há qualquer coisa que encanta em Heartbreak Hotel. Os poemas, cujos títulos equivalem a números de quartos de hotel (à excepção de dois, intitulados Recepção e Elevador), sucedem-se à maneira de sequências cinematográficas. É este, definitivamente, um filme de amor. Mas é um filme de amor trágico, desses filmes onde o amor se mistura com a dor dos dias comuns, com uma recusa (in)voluntária do mundo, com a solidão, com uma espécie de sentimento de deslocação permanente, com: «A cegueira dos vizinhos, os gritos na cozinha, todas / as pequenas luzes que se acendem perto / onde dois homens se reúnem em seu nome; / os placards, os outdoors, os néons, / todas as palavras que não souberam inventar; / a ponte, a estrada, o bilhete que diz / que ninguém dormirá hoje em casa / e o pedido de desculpas do farmacêutico à mulher / pelo fármaco para as dores / de ter de ser» (p. 43). Mais do que a música de Elvis Presley, vem-nos à memória o cinema de Wong Kar-Wai, talvez induzidos que somos pela presença constante da chuva num hotel «donde se avista o mundo possível» (p. 45).

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