quarta-feira, 17 de maio de 2006

A ESCRITA CASTA

A Escrita Casta (Triunvirato, Março de 2006) é o segundo livro de poesia de André Sebastião (n. 1980), estreado em Maio de 2004 com A Minha Voz No Teu Nome (Ausência). À época, se bem me lembro, notei em alguns dos poemas desse primeiro livro um erotismo requintado que partia de uma espécie de reconstrução da memória e das imagens que nela habitam. Ao segundo acto, o poeta deixou de lado o erotismo e concentrou-se no ofício da escrita. Os 25 poemas que compõem A Escrita Casta, agrupados em duas partes, podem ser lidos como uma espécie de reflexão poética acerca da linguagem que praticam. Estamos no domínio da introspecção, pautada por um hermetismo cujo desafio maior será decifrar sem qualquer intenção determinística. Numa poesia como esta, quem escreve é o leitor. Ao leitor, tomada a posição de poeta, caberá decifrar o que lê num jogo onde essa decifração se confunde permanentemente com recriação do poema. Nem todos estarão predispostos a aceitar tais regras, exigindo aos versos uma clareza que, em boa verdade, será sempre equívoca. O paradoxo, no caso presente, parece ser este: a ambicionada «escrita casta» resulta da relação impura que a palavra estabelece com os objectos nomeados. E se essa relação da palavra com o objecto é já consequência de um gesto maculador, que dizer da relação do poeta com a palavra? Mácula sobre mácula, o poeta é, digo eu, quem mais desonra o mundo. Não vai tão longe André Sebastião, preferindo reflectir aquilo a que eu chamaria uma mecânica da linguagem onde «cilindros compactam palavras na ignição da cabeça» (p. 13), «o ar se dilata como magnitudes de energia / nas molas da palavra» (p. 15), «há o bocal dócil dos injectores de palavras, caudaloso / à saliência da luz» (p. 19), etc. É nesta movimentação de cilindros, molas, injectores, cremalheiras, utensílios, aparelhos, motores, que surge também a referência a um filme, a um guião, a um estúdio fotográfico, oficina, talvez, dessas palavras castas que alimentam a arte poética. Palavras do olhar? Imagens? Sons? Silêncio? O que é a palavra senão um retrato da coisa que nomeia? Não fosse o poeta, manipulador de palavras, um construtor da realidade ou, se quisermos, um alquimista, no sentido de fingidor e de falsificador, seria, nesta versão, o protector de algo puro e intacto: «o começo das palavras». O que está aqui em causa é a relação do poeta com a sua matéria-prima, as palavras. Neste sentido, não só pelo complexo lexical usado, vêm facilmente à memória os nomes de António Franco Alexandre e Carlos de Oliveira (citados em epígrafe), Herberto Helder e António Ramos Rosa. Sobretudo o deste último, na forma como praticou a palavra poética em livros surgidos já na década de 1980 tais como O Centro na Distância (1981) e Gravitações (1983). Os poemas de André Sebastião, poeta ainda à procura da sua própria voz, arriscam uma complexidade rítmica, com uma pontuação muito própria, que está longe da fluidez desses grandes nomes da poesia portuguesa. Apesar de concisos, não tendo na sua maioria mais que os 14 versos de um soneto, os poemas de A Escrita Casta são de uma leitura tão exigente que por vezes parecem estranhamente longos. No final fica o sentimento não propriamente de uma escrita casta, seja ela qual for, mas antes de uma escrita ainda em estado de incubação.

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