Após a edição de uma antologia de José Ángel Cilleruelo (n. 1960), a Averno propõe-nos agora um poema de José Mateos (n. 1963). Ambos traduzidos para português por Joaquim Manuel Magalhães, estes livros são, de certo modo, a confirmação de que alguma da poesia espanhola actual tem lugar nos escaparates das livrarias portuguesas. Ainda bem que assim é, pois de outro modo não nos seria possível um acesso tão facilitado a esta extraordinária névoa. Organizado em oito momentos, o longo poema de José Mateos é um notável exercício reflexivo sobre a vida. Não se julgue, precipitadamente, estarmos perante mais um compêndio de experiências quotidianas atravessadas pelo sentimento de ausência de sentido. Mais do que o sentido da vida, o que aqui se questiona é a vida ela mesma. A dúvida, como elemento essencial na dissecação desse mistério, é o fio condutor destes versos. O questionamento que ocorre ao longo do poema é, antes de mais, o magma da própria vida feita poema: «Quem sabe que mistério é uma vida / vertida num papel, letra por letra?» (p. 11) A dúvida não tem aqui o lugar de princípio ou método a partir do qual se acede à verdade, pois ela é a própria verdade. Uma verdade que é sempre névoa, mistério, sinal, indício. A segunda pessoa que se intromete na meditação é o sujeito poético interpelando-se, ao mesmo tempo que, dando ao leitor a possibilidade de assistir a essa interpelação, o interpela, criando um efeito de identificação através das questões profundamente humanas que levanta: «Sempre que algo finda, que alguém morre / e no silêncio te invade a fadiga, / teu ai rebelde reza a um Deus sem nome» (41). Mas este não é um Deus que se pense, inventado pela razão, este não é o Deus dos cartesianos, o Deus descrito nos livros. Este «é o Deus da fé, o Deus obscuro» (p. 43). É um Deus sempre misterioso e indecifrável, provavelmente o restante sinal que provém da debilidade limite do ser humano: a finitude. Poesia angustiada, esta não é uma poesia que negue radicalmente a esperança. Aponta a alegria e a vida, sem negar a amargura e a morte. No posfácio, Joaquim Manuel Magalhães fala de uma «elegia do humano que tem a morte como finalidade de saber» e de um «pressentimento do divino, pela dúvida do divino». Nem mais. O resto consubstancia-se numa das mais belas “definições” de poesia que li nos últimos anos: «Poesia é mostrar com a luz ténue / de poucas palavras, com o archote / de uma língua, pesem-nos as palavras, / a fundura que nos põe sem palavras» (p. 57). Bem diferentes são os trinta poemas, de Vítor Nogueira, que compõem o conjunto que dá pelo nome de Senhor Gouveia. Director do Teatro Municipal de Vila Real, casa de cultura que tem vindo a editar alguns livros de poesia de autores afectos à Averno, Vítor Nogueira narra-nos em verso as aventuras de um tal Senhor Gouveia nos idos da década de cinquenta. Aparecidos pela primeira vez na desapreciada Periférica, alguns destes poemas podem ser lidos como uma espécie de parábola, em registo irónico, de uma certa forma de se estar na vida – mormente, mas não só - literária. O tom procura ser castiço, aproximando-se ligeira e contidamente do picaresco. O retrato traçado do Senhor Gouveia, escrevinhador de sonetos e alugador de quartos, tipifica o lado mais provinciano de um Portugal demasiadamente entregue à compostura e à respeitabilidade, assim como parvamente burguês e arrivista. Passeando «o seu spleen provinciano» pelas «ruas desertas», este escrevinhador de versos desconforta apenas pela apavorante actualidade das preces: «Deus proteja / a língua de Camões de poetas sem qualidades» (p. 36). Enfim, não será de mais dizê-lo: Deus nos proteja a nós dos gouveias deste mundo.
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