terça-feira, 25 de julho de 2006

JERUSALÉM

Achei que tinha chegado a altura certa para ler Jerusalém, romance de Gonaçlo M. Tavares (n. 1970) galardoado com o Prémio Ler/Millenium-BCP. Não vou entrar em pormenores técnicos sobre a natureza do romance, nem sobre a forma circular que serviu à construção da narrativa. Também não me interessam as evocações, os diálogos mais ou menos declarados com outras obras. Prefiro ir direitinho à história de Theodor e Mylia Busbeck. Ele, médico e investigador de saúde mental, a braços com uma tese sobre a «distribuição do horror ao longo dos séculos»; ela, esquizofrénica, ex-paciente de Theodor, «saudável a nível físico e a nível espiritual», anormal «nas vontades». Divorciam-se depois de Mylia haver traído Theodor com Ernst Spengler, paciente do Hospício Georg Rosenberg, «à frente de outros doentes». Do adultério nasce «Kaas Busbeck, filho de Mylia e Ernst Spengler, mas formalmente registado como tendo por pai o doutor Theodor Busbeck» com quem vive. Percebemos estar implícito nesta trama um ímpeto alegórico que não compete aqui desconstruir, mas esse mesmo ímpeto acaba explicitado quando a única frase onde aparece o nome da cidade que dá título ao livro - «Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita» (p. 170). – surge refeita 30 páginas depois: «Se eu me esquecer de ti, Georg Rosenberg, que seque a minha mão direita» (p. 200). Este paralelo traçado entre a cidade e o hospício pode não querer dizer nada, mas pode também querer dizer muito. A dimensão alegórica do romance de Gonaçlo M. Tavares é, quanto a mim, a sua evidente mais-valia, não tanto pelo que a mensagem acarrete de político como pelo que deixa supor de filosófico. O hospício, como a cidade santa, é o local onde se busca tratamento para a “alma”, não deixando de ser, pelas suas mais ou menos perceptíveis contrariedades, um local onde a “alma”, obrigada a uma normalidade que não é sua, ainda mais se afasta da sua natureza. Note-se como o director do Hospício Georg Rosenberg coloca o problema da loucura: «O doutor Gomperz possuía, assim, da loucura – embora não se atrevesse a expressá-lo – uma imagem associada à imoralidade: louco é o que age imoralmente e louco ainda é o que agindo moralmente pensa de modo imoral. A loucura seria, assim, uma pura falta de ética, momentânea, porventura, e portanto curável, ou definitiva, eterna, e portanto: incurável» (p. 107). À disciplina moral corresponderia, portanto, a normalidade. Deslocadas nos parecem as palavras do doutor Gomperz quando constatamos serem as mais inexplicáveis imoralidades praticadas em nome dessa normalidade, da mesma maneira que em nome dessa normalidade parecem querer justificar-se, tantas vezes, os gestos mais amorais. Vêm-nos à memória as teses de Arno Gruen, quando em A Loucura da Normalidade concluía ser o esforço por agradar aos que nos negam como pessoas «a força propulsora na vida». Mylia, aparentemente «desligada do seu interior», é ainda quem, pela dor, mais a ele está conectada: «Estar doente era uma forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer» (p. 7). O medo diário, o terror ininterrupto, o horror, o perigo, que são já causa e consequência da doença não podem ser tratados senão pela resistência à total e absoluta desconexão com o Eu. Daí que para o final duas dores apareçam bem distinguidas: a dor má (do espírito), porque castiga a vontade de viver; a dor boa (do apetite), porque reforça a vontade de viver. Estou em crer que outro dilema não será o de Jerusalém. Do livro e da cidade.

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