sexta-feira, 7 de julho de 2006

LADRÕES DE BICICLETAS

Vittorio de Sica, Ladrões de Bicicletas
Ladrões de Bicicletas
de Vittorio de Sica

Na história do cinema mundial, o neo-realismo italiano apareceu como uma das correntes mais lancinantes do pós-guerra. Este tipo de classificações, como sabemos, pode prejudicar o olhar sobre uma obra. Não sendo especial adepto de ismos, prefiro esforçar-me por uma perspectiva atenta ao que num produto artístico haja de mais singular. A verdade é que existem certas obras que, para o bem e para o mal, acabam por se constituir como alicerces a partir dos quais atribuímos significado a um conceito. Ladrões de Bicicletas, estreado em 1948, é um desses exemplos que contribuiu, com o passar dos anos, para que o conceito de neo-realismo tivesse alguma consistência. Diz-se hoje ter sido essa uma escola datada, marcada pelo comprometimento político, resistindo à mediocridade das obras mais comerciais e, por consequência dessa postura, recorrendo a meios que tivessem sobretudo em atenção a mensagem que se pretendia fazer passar. Optava-se pela força da mensagem em detrimento do adereço. Não se julgue porém que este cinema prescindia dos seus ornamentos estéticos, podendo mesmo a sua ausência ser considerada uma mais valia ao serviço da tal mensagem. Assim, tanto a ausência de caracterização como um aparente desleixo na fotografia, podem hoje ser interpretados como ornamentos outros com propósitos muito específicos. Em Ladrões de Bicicletas tudo isso é primorosamente trabalhado em torno de uma história onde paira o fantasma do desemprego. Chegamos ao universal, ao sem tempo, ao intemporal. Em nada pode este filme ser considerado datado, se nos atentarmos ao que nele se vislumbra de mais trágico: a solidão dos homens num mundo onde a política é a do «salve-se quem puder». O problema do desemprego surge como excelente pretexto para se pensar essa condição última de: ser homem numa sociedade moderna. Mais que a pobreza física, o que ressalta neste filme é o desespero e a humilhação que advêm dessa mesma pobreza. Neste sentido, os desempregados de ontem não serão diferentes dos desempregados de hoje. Talvez já não necessitem de uma bicicleta para manterem um emprego, mas esse é apenas um pormenor narrativo que não esgota o alcance do filme. Um dos aspectos que sempre me impressiona neste filme é a frieza com que o italiano Vittorio de Sica aborda a questão. Os ladrões de bicicletas são pobres que roubam pobres, gente que em desespero se desune, se trai, se nega. Neste filme, o maior inimigo do pobre só é a pobreza na medida em que coloca os homens uns contra os outros. Ou seja, a verdadeira pobreza é a ausência de solidariedade, a solidão e o isolamento a que fica condenado aquele que já não pode esperar nada de ninguém. Como se a pobreza transformasse a confiança num inimigo. Num tempo de arrivismos insidiosos, faz todo o sentido continuar a rever uma obra assim. O problema hoje, mormente num dos mais pequenos e pobres países da Europa, não é outro senão o da desunião entre os que nada têm. Essa desunião que parte amiúde da perversidade com que os fortes metem os fracos a enxotarem-se uns aos outros. A mais intragável miséria de todas, creio, é essa. Pois só essa nos condena a sermos um nada absoluto.

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