quinta-feira, 2 de novembro de 2006

SOPHIA

Sophia de Mello Breyner Andresen
Sophia de Mello Breyner Andresen
de João César Monteiro

O primeiro filme de João César Monteiro é um documentário sobre Sophia de Mello Breyner Andresen. A brevidade do objecto não é proporcional à dignidade da obra, pois trata-se de dezassete minutos de pura poesia cinematográfica, ainda que João César Monteiro tenha afirmado que o filme era a prova de que a poesia não é filmável. Realizado entre Lisboa e Lagos, o documentário abre com uma dedicatória a Carl Th. Dreyer e uma epígrafe de Jorge de Sena. Sena, que também reflectiu a sétima arte (cf. Sobre Cinema, Cinemateca Portuguesa, 1988), escreveu o seguinte, a propósito de Milagre de Milão, de Vittorio de Sica: «Eu creio que, como poucos, este filme é uma lição de firmeza e de energia, a coberto da mais delicada ou caricata fantasia poética». O mesmo não ficaria mal afirmar acerca de Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), a curta-metragem documental com que se estreou um dos mais empolgantes realizadores portugueses de sempre. A presença constante do mar, os planos lentos sobre o reflexo das águas na rocha, o namoro dos elementos, traça um quadro bastante fiel à obra que Sophia nos outorgou, conquanto o que mais se destaque neste filme não seja propriamente essa fidelidade. No fundo, durante aqueles dezassete minutos de película assistimos a uma espécie de natureza morta em movimento. Um poema cujo contraste mais evidente é o da fronteira entre o artifício e o real, fronteira ténue e, por vezes, impossível de delimitar. O próprio artifício aparece aqui incorporado no real, fazendo parte do real, do jogo que se estabelece entre nós, de forma mais ou menos consciente, e a realidade. Logo numa das primeiras cenas, Sophia lê A Menina do Mar a uma criança que julgo ser um dos seus filhos. No final da leitura pergunta à criança se ela gostou, ao que esta responde advertindo-a de que podia ter feito uma voz mais natural, que aquela não era a sua voz. Mais à frente, numa cena que Jorge Silva Melo (assistente de realização) diz ter sido combinada sem o conhecimento da poeta (lembramos que a própria abominava ser chamada de poetisa), Sophia encontra-se sentada a falar da poesia, em tom coloquial, como desnudamento do ser. Interrompida por uma música dos Beatles, a autora de No Tempo Dividido perde a compostura, irrita-se, deixa cair a pose. Até onde a Sophia que falava, envolta numa aura de magnanimidade, não era uma Sophia encenada? Até onde a Sophia dos poemas é a própria Sophia? Até onde a mulher se confunde com a poesia? A partir de onde a Sophia provocada, a socorrer-se de um cigarro num repente de irritação, não pode ser a própria Sophia? «Averdade sobre uma pessoa não é um espectáculo», escuta-se algures durante o filme. Nem é isso que importa. No entanto, é interessante pensar o quão distante pode estar a obra do obreiro. Costumamos ouvir falar da poesia, da grande poesia, como uma espécie de prolongamento do seu criador, senão como um mero reflexo da sua alma. Estou em crer que essa perspectiva é um pouco ingénua. Há sempre algo de revelador na poesia, é certo. Mas o que é que se revela? A identidade, uma identidade, o que se é, o que se desejaria ser, tudo isso, nada disso? O documentário, que leva o nome da documentada, poderá ser um espelho mágico que reflecte todos os ângulos do ser que documenta? Talvez fosse pedir muito, mas, pelo menos, ousa ser o mais poético possível sem se perder na poesia. É cinema. E mostra-nos, sob a luminosidade das palavras da poeta, esse momento de fractura em que ela se torna mulher. Mulher comum, parte do povo que é filmado na lota, entre os peixes mortos que são, ao mesmo tempo, «destino, realização, salvação e vida». Porque a poeta também é isso, também foi isso, mulher, mulher comum:

NESTES ÚLTIMOS TEMPOS

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo – de seu
Viscoso gozo da nata da vida – que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?


Julho de 1976

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