domingo, 5 de novembro de 2006

VISÕES E DEMONSTRAÇÕES

No ainda curto catálogo das Edições Vendaval estávamos habituados a encontrar ensaio, mormente literário, de autores contemporâneos estrangeiros e nacionais. Já aqui tenho chamado a atenção para alguns desses títulos, entre os quais destaco Resistência da Poesia, de Jean-Luc Nancy, e A Anomalia Poética, de Silvina Rodrigues Lopes. Curiosamente, era desta mesma autora a única excepção, pelo menos por mim conhecida, à inclinação ensaística da Vendaval. Refiro-me a um pequeno livro de poemas em prosa, intitulado Sobretudo as Vozes, que Silvina Rodrigues Lopes deu à estampa em 2004. Já no ano corrente chega-nos este Visões e Demonstrações, de Maria Teresa Duarte Martinho. Acerca da autora, cujo nome me era completamente estranho, nada posso dizer, mas os seus poemas merecem-me uma nota de leitura. O corpo essencial de Visões e Demonstrações é composto por uma trintena de poemas, aos quais se juntam, no final, Sete canções, duas das quais escritas para peças do compositor Carlos Marecos. Os poemas de Maria Teresa Duarte Martinho são relativamente curtos e discorrem sobre temas diversos, deixando perceber um apurado trabalho de concentração verbal onde podemos destacar três aspectos formais: primeiro, a ausência de ponto final no último verso, que não tem nada que ver com ausência de pontuação ao longo do texto, como que suspendendo o termo do poema, deixando em aberto a sua conclusão e renunciando à imposição daquele remate que tantas vezes armadilha a leitura; segundo, a utilização frequente dos parênteses, não propriamente para isolar referências exteriores ao corpo do texto, mas antes reforçando elementos essenciais para a sua compreensão; por fim, um extremo cuidado nas quebras de verso que confere uma respiração autónoma a cada frase sem desatender a perspectiva global do texto. Não há, portanto, ao contrário do que tantas vezes observamos na poesia portuguesa actual, qualquer gratuitidade no desenho destes poemas sobre a página. O que muitas vezes não passa de prosa disfarçada de poesia, assume aqui o seu carácter original, fazendo-nos crer que dificilmente estes poemas poderiam ser outra coisa qualquer; o que muitas vezes não passa de adornado formalismo e hermetismo, torna-se aqui reforço de sentido, ou seja, abertura do poema à leitura. Acresce ainda uma muito saudável economia de efeitos estilísticos, não fugindo a autora, por vezes, a uma rima que de tão natural chega a parecer deslocada. Nota-se também, em alguns poemas, a presença de uma ironia que é, neste caso, mais excepção que regra, ainda que o tom geral seja o de quem reflecte desassombradamente o seu tempo, fazendo do poema testemunho, visão e demonstração. Veja-se, a título de exemplo, este Recado para Teresa de Ávila: «De um século saturado, / é donde te escrevo. / Apesar de tudo, / a água continua dando provas, / a ti e à tua tese das coisas do espírito. / Calma e eléctrica, / no rio ou num repuxo / pronta para relâmpagos / e autismos. / Se tu pintasses, / farias o que um pintor representou / e um filósofo viu: / dias sem paz, / água alterada e céu comovido / num coito natural» (p. 13). Além de Teresa de Ávila, encontramos ainda referências a Henri Michaux, lugares (Rua da Palma, igreja de S. Domingos, passeio do Paço da Rainha, Gemaldegalerie, Veneza), reminiscências familiares, envios para obras de Jackson Pollock, Bartolomeo Montagna e Martin Munkácsi, epígrafes de José Afonso e de Sophia de Mello Breyner Andresen, etc.

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