terça-feira, 5 de dezembro de 2006

BOCA DO INFERNO

Boca do Inferno é a expressão pela qual ficou conhecido o poeta Gregório de Matos e Guerra, nascido na Baía de Todos os Santos em 1633. Ironia das ironias, de santo não tinha nada este descendente de portugueses que a determinada altura da vida resolveu entregar-se a todos os vícios possíveis de imaginar. Antes de viajar para Portugal com a intenção de estudar leis, frequentou um colégio de jesuítas. Já na pátria lusa, matricula-se na Universidade de Coimbra. Forma-se em Cânones no ano de 1661, o mesmo do casamento com D. Michaela de Andrade. Inicia uma auspiciosa carreira jurídica que o prenderá a Portugal durante trinta e dois anos. Entre os seus amigos destaca-se o portuense Tomás Pinto Brandão (n. 1664 – m. 1743), autor de um volume de versos em estilo satírico intitulado Pinto Renascido (1732). A vida dos dois amigos confundir-se-á de tal forma que ainda hoje permanece um mistério a verdadeira autoria da sátira Este é o Bom Governo de Portugal: «Os Ministros de Justiça / que nunca a fizeram direita, / porque a valia respeita / pela puta, ou por cobiça, / o Demónio assim lhe atiça / este fogo em seus ardores, / juiz e corregedores, / letrados e escrivães, / alcaides e tabeliães, / todos vestem de um saial. / Este é o bom governo de Portugal». Precisamente na companhia de Tomás Pinto Brandão, Gregório de Matos regressa ao Brasil, já depois de ter enviuvado, nomeado tesoureiro-mor da Sé baiana. Será rapidamente destituído de todos os cargos por recusar ordens superiores e o uso da batina. Inicia-se assim a outra carreira de Gregório de Matos, uma carreira que eu diria em tudo oposta à de magistrado. A falta de tento na pena e o confronto com os podres da sociedade em que vivia, podres esses bem seus conhecidos de perto, como que o impelem à denúncia, em estilo corrosivo e pornográfico, da vilania e cretinice, da mediocridade e pedantice da canalha de sua terra: «Brás, pastor inda donzelo / Querendo descabaçar-se, / Viu Betica a recrear-se, / Vinda ao prado de amarelo; / E tendo duro o pinguelo / Foi-lho metendo, já nu, / Fossando como um tatu. / Gritou Brites: inda bem, / que tudo sofre quem tem / Rachadura junto ao cu». Todas as frontarias saem arruinadas nos versos atiçados deste Gregório, sejam freiras ingénuas, sejam damas mui altas, sejam conselheiros hipócritas, governantes facínoras. A veia erótica das suas décimas – mais correcto seria dizer o músculo erótico – extravasará todas as fronteiras daquilo a que hoje se apelidaria de politicamente correcto: «Eu, na minha opinião, / Segundo o meu parecer, / Digo que não há foder / Senão cono de enchemão: / Porque um homem com sezão, / Inda sendo caralhudo, / Meterá colhões, e tudo, / E assim mostra a experiência / Que, do cono a excelência, / É ser bem grande e papudo». Novamente casado, com uma tal Maria dos Povos, entrega-se com gosto e afinco à boémia, à vagabundagem, à embriaguez. Recita os seus poemas na rua e nas tabernas, e, talvez seguindo o exemplo de Tomás Pinto Brandão, vende-os pela cidade a troco de polémicas várias. Denunciado à Inquisição em Lisboa, ameaçado de morte, vai deportado para Angola no ano de 1694. Morrerá um ano depois, já regressado ao Brasil, vítima de febres contraídas em África, no dia 26 de Novembro. Recordo hoje Gregório de Matos como se o tempo não tivesse passado, como se a mesmo falso puritanismo continuasse a reger, sob moldes diversos, a nossa vida de todos os dias. A propósito de quê esta onda censória que nos assola, porque assola, vinda de quem, lá do alto da sua sabedoria instalada, julga poder refrear a expressão, a liberdade, como se esta fosse coisa de hoje em dia? O medo, creio, é o da visibilidade, é o de estar mais próximo e disponível o eco da denúncia. Não podendo já deportar para Angola aquele que ousa apontar o dedo à ferida, não podendo esconjurar aquele que se arrisca na denúncia dos podres instalados, denigre-se e ameaça-se a voz até que ela recue ao silêncio. E é curioso, tão curioso, que sejam precisamente alguns dos que mais lutaram para que fosse possível dizer basta, quem agora vem brandir proibições, à luz de um temor que é o de se ver atingido pela ausência de rosto e, por isso, de controlo que esta rede para a qual saltámos implica. A esses a última décima de um Gregório, passados tantos séculos, 'inda à espera de ser expelido: «Fodamo-nos, minha vida, / Que estes são os meus intentos, / E deixemos cumprimentos / Que arto tendes, de comprida. / Eu sou da vossa medida / E, com proporção tão pouca, / Se este membro vos emboca / Creio que a ambos nos fica, / Por baixo crica com crica, / Por cima boca com boca».

- Gregório de Matos, Boca do Inferno, colecção Contramargem 15, & etc., 1982;
- Tomás Pinto Brandão, Vida e Morte de Tomás Pinto Brandão Escrita Por Ele Mesmo Semivivo – Este é o Bom Governo de Portugal, Publicações Europa-América, 1976.

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