sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

QUARENTA ROMANCES DE CAVALARIA

Tentar decifrar um livro de poesia é quase sempre uma tarefa ingrata, dado o carácter indefinível do próprio discurso poético. O confronto com um livro de poemas exige, deste modo, uma vigilância que não tenha na sua origem a intenção de vigiar, ou seja, uma abertura e um desprendimento que permita ser a palavra poética a criar, por si só, os sentidos e os significados que tiver de criar no momento da leitura. Nunca se lê um livro de poesia da mesma maneira, assim como duas pessoas jamais repetirão a mesma leitura. Julgo, aliás, que é assim com todo o género literário, mas mais ainda com o poético. Acontece existirem livros cuja organização nos sugere uma ordem formal que escapa ao conteúdo, sobretudo se o conteúdo induzir impulsos, manifestar liberdades, ostentar, até, um certo descomprometimento com o leitor. Quarenta Romances de Cavalaria e Outros Poemas, de Frederico Mira George (n. 1962?), é um desses livros. Abre com uma dedicatória, seguida de epígrafe, a Herberto Helder, o que não admira, pois a este poeta vai Frederico Mira George buscar aquele fluxo de escrita que a tantos abespinha e a outros cativa. Muito distante, porém, do mestre em termos de sensibilidade poética, o autor de Quarenta Romances de Cavalaria prefere um registo mais provocador e irónico, por vezes tétrico e mesmo grotesco, diria que muito menos místico e muito mais surrealizante. Logo no primeiro de quatro livros, todos compostos por quarenta poemas, deparamos com duas noivas sentadas nos bancos de um jardim onde olham um revólver: «marta e ana amam o revólver / são noivas num jardim entrecruzando as pernas / como cinzentos brincos-de-princesa na praia» (p. 11). Seguem-se «agulhas que sabem a chouriço» (p. 12), «miríades de deuses que precisam das suas sotainas engomadas pa / ra celebrar orgias no olimpo» (p. 13), pernas ásperas, pés doridos, sangue, vómito e febre, «a cabeça a estalar / de agulhas» (p. 18), «nuvens em forma de ovo transbordando de pólen e azeite» (p. 26), chuvas de pregos e de martelos, a degradação do amor, é óbvio, o cansaço a tomar conta da paixão, o costume e a existência doméstica a derrearem o amor. As imagens irrompem dos versos de Frederico Mira George como uma encruzilhada de sentidos, criando um ambiente onde a força da respiração se pontua a si própria, uma encruzilhada avessa às convenções que armadilham, tantas vezes, a poesia. O que aqui temos é a experiência de um acto terrorista, por isso mesmo poético, onde as palavras saem estropiadas, partidas a meio, acopladas, soletradas, com a pontuação por vezes invertida, outras vezes ausente, em regime de ruptura com qualquer tipo de tratado acerca da arte de bem escrever. Atentemo-nos ao título: Quarenta Romances de Cavalaria e Outros Poemas. Uma breve pesquisa sobre o romance de cavalaria informa-nos que este surgiu na Idade Média, tendo como principais características a complexidade do enredo, por vezes próximo do fantástico, e o carácter simbólico. É esse simbolismo o que se retoma nestes poemas, poemas que também são romances, enredos, situações que emergem na palavra com a figura de uma teia. Em Metrónomo, o Livro Segundo, o poeta (con)centra-se no eu e lança-nos pistas: «por dentro do sangue as veias correm álgidas levando ao coração / uma leveza inteira / e é nesse percurso gélido / intrasanguíneo / que reside o sentido último do verso» (p. 62). Surgem, aqui e acolá, referências várias aos rituais católicos, misturadas com evocações da vida quotidiana, familiar, reflexos próximos de um erotismo insólito, muito ao jeito do que acontecia na poesia e nos filmes de Luis Buñuel. Há evocações várias, diálogos, referências: Évora, Godard, Verdes Anos, Hans Hesse, Satie, Bach, Cervantes, Fiama, Al Berto, etc. O que quer tudo isto dizer? Puzzle sempre por terminar é o poema, enquanto repositório das complexas redes de associações que nos enformam a memória. Os Quarenta Romances de Cavalaria propriamente ditos são o Livro Quarto deste puzzle, quarenta poemas em prosa, sem qualquer tipo de pontuação, para ler de um só fôlego: «…vivo num pequeno apartamento de duas assoalhadas mais casa de banho e cozinha nos arredores de lisboa tenho uma razoável colecção de selos e bilhetes de autocarro com números capicua e gostava que a minha vida pudesse terminar sem grandes sobressaltos pelo menos que não voltasse tudo para trás que não tivesse que me confrontar de novo com a peste dos romances de cavalaria…» (p. 186).

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