terça-feira, 19 de dezembro de 2006

DIÁRIO ÍNTIMO

Duvido que existam muitos leitores de poesia da minha geração interessados neste Diário Íntimo, de Luís Amaro (n. 1923). Provavelmente estarão mais inclinados para o neo-realismo depurado de Carlos de Oliveira (n. 1921 – m. 1981), para o surrealismo de Mário Cesariny (n. 1923 – m. 2006), para a ironia certeira de Alexandre O’Neill (n. 1924 – m. 1986) ou para a interminável ontologia de António Ramos Rosa (n. 1924), isto só para mencionar quatro autores contemporâneos de Luís Amaro, aqui muito cindidos aos chavões que lhes são normalmente associados. Na verdade, se quisermos entender esta poesia teremos de pensar em outros nomes com a qual ela mantém uma clara e assumida continuidade: de António Nobre (n. 1867 – m. 1900) a Fernando Pessoa (n. 1888 – m. 1935), passando, inevitavelmente, por Teixeira de Pascoaes (n. 1877 – m. 1952). Nos poemas deste Diário Íntimo encontramos a mesma inquietação que enforma os versos dessa tríade poética, a mesma preocupação com o sentido da vida, o mesmo carácter intimista, a mesma fidelidade ao ritmo e à musicalidade das palavras. Não admira que, em carta reproduzida na marginália final, Teixeira de Pascoaes declare: «É da melhor Poesia moderna! E, sendo moderna, não ofende certas leis imutáveis da Poesia, isto é, o que nela é música. E poesia sem música o diabo que a leia! Poesia ruidosa é uma horrenda caricatura dessa Deusa!» (p. 137) Nunca uma marginália fez tanto sentido numa obra antológica, sabida e reconhecida que é a dedicação do autor de Dádiva (1949) – seu único livro de poemas – ao estudo da literatura portuguesa do século XX. Essa dedicação é comprovada pela gratidão manifesta nos testemunhos epistolares agora revelados. Casos, entre outros, de Sebastião da Gama, Jorge de Sena, Júlio Dantas, Jacinto do Prado Coelho, Irene Lisboa, Natércia Freire, Miguel Torga, Agostinho da Silva, Vitorino Nemésio. Diga-se, aliás, que todo este livro é uma mostra de gratidão, pois trata-se de uma excepcionalíssima reedição levada a cabo pela &etc, editora avessa a reedições e homenagens. Albano Nogueira, num prefácio breve mas esclarecedor, fala-nos, a propósito desta poesia, «num desbobinar sóbrio, discreto, quase linear, (…) concreto mas envolvente, caloroso e persuasivo.» Do livro Dádiva, recolha de poemas escritos entre 1941-49, salientarei um lirismo melancólico, como disse inquietado pela busca de um sentido da vida, onde sonhos descambam em desilusões, à esperança se sobrepõe a dúvida desencantada, a luz das estrelas é ameaçada por uma sombra que vem de longe. No entanto, a poesia de Luís Amaro não é de excessos. Com uma sobriedade que, por vezes, pode desmoralizar o leitor menos precavido, ela propõe-nos todo um Programa: «Quando vier a tristeza, / faz que ela tenha uma grandeza. // Quando vier a dor, / faz que ela seja bela como o amor. // Quando vier a rara alegria, / faz que ela seja pura como a luz do dia. // Quando vier a noite, / mansa, a envolver teu coração, / faz que ela traga ao erro o seu perdão» (p. 54). Esta simplicidade, este mesmo cuidado formal, não desaparece nos Outros Poemas (1940-75). Porém, nos poemas finais há uma maturidade que, em certa medida, suplanta a amargura inicial e a fragilidade das soluções programáticas, porque, entretanto, a melancolia tornou-se doce e a dor e a tristeza não são já só apenas o termo da dúvida mas também o princípio de uma esperança renovada: «A dor, amordaçando, purifica: / que ela te dê no sangue o novo alento / para outros voos de que sairás vencido / (mas entretanto vives…)…» (p. 116) Quase todos os poemas deste livro trazem dedicatórias, sendo alguns deles um oferecimento aos mestres: Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Augusto Frederico Schmidt, Sebastião da Gama, José Régio. Poesia assim afectuosa e de afectos, não pode passar despercebida.

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