de Michael Radford
Andava há muito tempo para escrever qualquer coisa sobre O Carteiro de Pablo Neruda, talvez desde que aqui cheguei. Fui adiando, adiando, adiando, até que soube do desaparecimento de Philippe Noiret, o actor que interpreta o Neruda do filme. Talvez não passe de mera coincidência, alinhavar agora, pouco depois da notícia da morte de Noiret, algumas palavras sobre um filme que comemorou 12 anos neste 2006 que ora finda. A verdade é que há coincidências embaraçosas, porque nos lembram ser a morte, essa porta aberta ao esquecimento, quase sempre a maior motivação da memória. E depois, ocupamos tanto do nosso tempo a pensar nos filmes que nos inquietam e nos intrigam que, por vezes, esquecemo-nos daqueles que muito simplesmente nos comovem. Il Postino é uma dessas raras experiências cinematográficas cuja magia reside no dom de nos comover, independentemente das circunstâncias íntimas que nos façam companhia nos momentos de revisitiação. Vi-o no cinema, como milhares de portugueses, já uns meses depois de se ter tornado num inexplicável e surpreendente fenómeno de bilheteira. Lembro-me de ter saído da sala com uma sensação de leveza apenas explicável pela noção de que havia aprendido algo, de que havia crescido mais um pouco por dentro e que isso só fora possível porque o que acabara de presenciar tocara-me nesse lugar mais íntimo da sensibilidade, nesse lugar sem marcação de onde vem toda a poesia, esse lugar a que gosto de chamar respiração. Há obras que nos ajudam, sem dúvida, a respirar melhor. O Carteiro de Pablo Neruda é uma delas. Realizado por Michael Radford, adapta a novela Ardiente Paciência de Antonio Skarmeta. O argumento desenvolve-se em torno da relação entre um humilde carteiro de uma ilha siciliana e o poeta Pablo Neruda que para aí vai viver, quando se encontrava no exílio por razões políticas. Essa relação despoletará no carteiro o gosto pela poesia, pelas metáforas, sobretudo por se convencer do poder encantatório das metáforas junto das mulheres. Pablo Neruda, poeta do amor, poeta do povo, poeta. Poeta do povo, demasiado ocupado consigo próprio e com a sua poesia; poeta do amor, especialmente apreciado pelas mulheres. É à sua poesia, às suas metáforas, que Mario, o carteiro, recorre quando pretende enfeitiçar a sua amada Beatriz. E consegue. Casam, honrados pela presença do poeta chileno como testemunha do matrimónio. Entretanto Neruda regressa ao Chile e Mario fica enclausurado na ilha de onde nunca saíra, fica e aguarda pacientemente notícias do seu grande amigo Pablo Neruda, notícias que tardam em chegar, notícias que se esvaem no esquecimento. Fiel ao poeta, mais que o poeta o fora a si, Mario converte-se ao comunismo, acabando por morrer numa manifestação onde leria, assim tivesse sido possível, um poema em honra do seu amigo ausente. É esse poema, esse poema do carteiro Mario, aquele que nunca chegamos a escutar, é esse o poema que mais importa neste filme. Ao pé desse poema silenciado pela morte toda a poesia de Neruda é mero adereço, porque esse poema é o poema da simplicidade, é o poema da fidelidade, é o poema da amizade, é o poema da ausência. É, talvez, o poema das coisas belas que Mario aprendeu a ver no ostracismo da sua ilha, as ondas do mar, o vento nas escarpas, as moitas, o silêncio de um imenso céu estrelado, as redes tristes de seu pai, pescador, e Beatriz. Sobretudo Beatriz, metáfora feita carne, feita corpo que não se explica, beleza inexplicável, como a poesia que explicá-la seria uma traição. Ao descobrir a poesia, Mario descobre também a beleza do mundo que o circunda, descobre-o com o espanto de quem vê pela primeira vez o mundo à sua volta. Massimo Troisi, o actor italiano que interpreta o carteiro, faleceu antes do filme estrear. Foi este o seu último fôlego, sereno, calmo, paciente, misteriosamente belo. Noiret junta-se-lhe agora, passados 12 anos. Que o esquecimento lhes seja tão leve quanto a poesia que nos proporcionaram neste filme.
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