quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

PREFLORAÇÃO

Dado à estampa pelas Quasi Edições em Maio passado, Prefloração foi distinguido na segunda edição do Prémio Daniel Faria. Julgo ser este o primeiro livro de Catarina Nunes de Almeida (n. 1982). Pelo menos nada nos informa do contrário na nota biográfica incluída numa das badanas da obra em causa, isto apesar de ser mencionado um outro prémio obtido pela autora, o Prémio Internacional de Poesia Castello di Duino, assim como a participação em revistas literárias. Acerca de Catarina Nunes de Almeida sei apenas o que foi aparecendo na imprensa: licenciada em Língua e Cultura Portuguesa, amiga de Casimiro de Brito, fascinada pela poesia oriental. Este fascínio está patente, desde logo, nas epígrafes de Issa Kobayashi, Matsuo Bashô e Shiki que abrem cada um dos quatro breves conjuntos de poemas de Prefloração. Não sendo um livro de haikus, nota-se nestes poemas um esforço de transparência e de simplicidade que os aproxima do género. Mas essa aproximação é operada, sobretudo, numa relação mulher-natureza sempre mais evocada do que contemplada, até porque muitas vezes a simplicidade não fica senão aquém de mero esforço ou intenção. De certa forma, não é sequer justo falar numa relação mulher-natureza, já que o ponto a partir do qual se percepciona a realidade é um ponto de fusão entre o homem, em sentido lato, e o mundo natural. Esse ponto, lugar de encontro e de emergência de uma cosmogonia muito específica, resulta, no haiku, de um processo de abnegação, ao passo que nos poemas de Prefloração ele é ainda o Eu da autora sobrepondo-se ao resto. Não podemos falar na poesia oriental de uma cisão entre o sujeito poético e o seu objecto, já que ambos se unem numa mesma realidade e dessa união resulta o poema enquanto testemunho depurado de uma certa forma de observar o mundo, uma certa forma de o contemplar. O que importa aí é a luminosidade das palavras e não a sua sombra. Pretendo com isto afirmar que aquilo que fascina no haiku, ou seja, o registo da sensibilidade de uma contemplação sem pretensões reflexivas, acaba por ser atraiçoado nos poemas de Catarina Nunes de Almeida, pois esta não resiste à tentação de sobrecarregar o mundo com imagens e metáforas que vêm de dentro, apenas de dentro, do sujeito. Assim, mar e terra, animais e sementes, são apenas pretextos para a exposição de um Eu, de um Mim, omnipresente: «Quando me dispo dorme em mim / o odor dos frutos mastigados» (p. 35). O que temos aqui, então, é uma forma ocidental de olhar as mistificadas tradições poéticas do oriente. Se o que disso resulta é bom ou mau, parece-me sempre muito discutível. Prefiro chamar a atenção para alguns versos que me parecem mais conseguidos, versos que, sozinhos, resultariam, talvez, em melhores poemas: «…os campos que germinam nas entranhas das sementes / e a terra que não morre de parto / ainda que as flores nasçam siamesas» (p.16); «há um pessegueiro dentro do fruto / um pomar de pessegueiros neste abrigo / rasgado pelas luzes da cidade» (p. 32); «A erva onde todos se deitam e se deita em todos /o chão que nenhuma mão nenhuma primavera lava» (p. 56). É nestes instantâneos que a poesia de Catarina Nunes de Almeida se revela mais atraente e luminosa. Pena que na maioria dos poemas ressalte alguma ausência de sobriedade e de discrição, talvez por culpa de um ímpeto a ser superado com a maturidade, que acaba por nos deixar aquele sentimento de ainda haver muito a rasurar.

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