domingo, 24 de dezembro de 2006

REVÓLVER

Se bem sei, Revólver é o terceiro livro de poemas de Rui Lage (n. 1975), depois de Antigo e Primeiro (2002) e Berçário (2004), todos publicados na colecção Uma Existência de Papel, das Quasi Edições. Não li o primeiro, mas lembro-me de ter escrito sobre o segundo: «estamos num campo afectivo que seduz pela forma como arrisca na irredutibilidade da memória a uma mera descrição do passado». Devo começar por dizer que se tinha apreciado o livro anterior, muito mais me impressionou o volume agora publicado. Não sei se é justo falarmos numa inflexão de discurso, pois aquele campo afectivo e um modo muito próprio de tratar a memória, feitos notar a propósito de Berçário, permanecem nos poemas deste Revólver. O que sucede é que nos quatro conjuntos que compõem esta colectânea encontramos uma boa dúzia de poemas com uma força, uma soltura e uma dinâmica argumentativa que escapava completamente aos poemas anteriores. Logo na primeira parte, intitulada Licença de porte de arma, a temática religiosa é abordada com um desassombro inquietante. Poemas como I.N.R.I., O fantasma de Nietzsche aparece no meu quarto e fala, Subsídios para uma Poética da Ciência e Deus na oficina, são, quanto a mim, do melhor que se publicou recentemente na poesia portuguesa. Rui Lage dinamita todos os preconceitos e estereótipos religiosos, sem negar uma muito íntima vivência da religiosidade, ao mesmo tempo que nos confronta com aquilo a que Paul K. Feyerabend chamou, noutro contexto, a ditadura fascista da ciência, uma ditadura que impõe modelos de observação e de explicação do mundo auto-proclamados de verdade mas que, no fundo, não passam muitas vezes de um rol de futilidades a disfarçarem o único facto evidente da vida: não temos solução senão conformarmo-nos com a insolubilidade das nossas dúvidas, amanharmo-nos nas coisas boas de vivermos, no que ainda nos reste de belo, natural e salvífico, aprendendo a viver com a inquietação e o desassossego das horas. Apetecia citar todos esses poemas, de tão coerentes me parecerem no seu conjunto. Opto pela parte final de Deus na oficina: «Resta-nos, irmãos, / esperar que a biotecnologia / nos possa salvar a alma, / essa coisa fora de moda, / quem sabe se feita / de proteínas / ou de informação alojada / no córtex parietal superior, // ou que num obscuro laboratório, / algum obscuro sábio, / com mulher, filhos / e contas para pagar, / comunique ao mundo / que decifrou enfim o pensamento de deus, / e assevere que não é assim tão complicado / ou transcendente, / mais valendo por isso irmos todos dormir / sobre o assunto // (porque amanhã é dia de trabalho)» (p. 32). É este cruzamento da ironia com o fulgor da reflexão o que faltava, ou pelo menos estava muito mais disfarçado, nos poemas anteriores do autor. Aqui deparamo-nos com todos os fantasmas do quotidiano, da vida citadina – no caso a cidade do Porto -, do absurdo existencial e da incapacidade perante a deterioração do país, fulgurantemente expressados sob a luz desse cruzamento, como se os poemas fossem balas disparadas contra o mal de vivre. Por vezes, em momentos menos felizes – como no poema O País à porta – cede-se a um ou outro lugar-comum: «país que secretamente não vota / para não se maçar», «país com mais que fazer / (futebol para ver / e mato para queimar)»… Mas que dizer do lugar-comum quando ele nos bate com a evidência de uma verdade insofismável? Com este livro, Rui Lage inclina-se para um exame do mundo e do país onde vive, contribuindo, com um senso irónico e uma preocupação política sincera, para um dos melhores momentos da poesia portuguesa contemporânea.

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