sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

UM HOMEM, UM GUARDA-CHUVA, UMA CABEÇA

A OVNI aterrou nas livrarias portuguesas, tanto quanto possível, com esta colectânea de contos do argentino Fernando Sorrentino (n. 1942). Apresentado na nota biográfica introdutória como «mestre do conto», de Sorrentino conhecia-se na língua portuguesa, que eu saiba, apenas o conto que dá título à colectânea agora publicada, outrora aparecido na excelente revista Ficções, com tradução de Fernando Venâncio. Os dezoito contos que compõem Existe Um Homem Que Tem O Costume De Me Dar Com Um Guarda-Chuva Na Cabeça provêm de quatro livros do autor. Assim, para uma relação mais minuciosa temos quatro contos de Impérios y servidumbres (1972), mais quatro de El mejor de los mundos posibles (1976), nove de En defensa própria (1982) e um de El remédio para el rey ciego (1984). Estando já anunciada uma segunda colectânea a ser posteriormente editada pela mesma casa editorial, podemos dizer que, apesar de ser vasta a obra de Sorrentino, perspectiva-se um panorama simpático, em língua portuguesa, de uma produção iniciada em 1969 com o livro La regresión zoológica. As histórias deste autor possuem, desde logo, uma vantagem relativamente a muitas outras: são inocentes até prova em contrário. Cometem algumas transgressões, sobretudo quando traem a lei das probabilidades, optando por um registo tão absurdo quão inverosímil. Mas esse registo absurdo, que pode verificar-se por exemplo na ideia de um homem que persegue alguém para todo o lado, a toda a hora e a todo o instante, batendo-lhe com um chapéu-de-chuva na cabeça, não se pode dizer gratuito. Por isso lhe chamo vantagem, já que muitas vezes a short story resvala com facilidade numa certa gratuitidade estilística. Isso acontece quando a narrativa se torna escrava do remate, da moral, da punchline extraordinária, grotesca, surpreendente. No caso dos contos de Sorrentino, as situações absurdas, normalmente caracterizas pela introdução de um elemento anormal em situações normalíssimas, nunca chegam a ser desfeitas nem solucionadas. Elas dão antes azo a uma estranha conexão com aspectos particulares da normalidade, aqui entendida no sentido de lei, regra social, hábito, costume, justiça, valores. É essa conexão à normalidade, por via de um absurdo em tom de «e se», que leva a personagem do conto que dá título à colectânea a habituar-se de tal maneira à presença do homem que lhe bate na cabeça com o guarda-chuva que chega a angustiar-se «de pensar que, porventura quando mais necessitar dele, este homem se irá embora» (p. 13). Os melhores contos desta colectânea – acrescento ao já referido os contos O Espírito de Emulação, Fábula Edificante, o brevíssimo Mera Sugestão, Uma Cruzada Psicológica, Essência e Atributo, Em Legítima Defesa – vivem destas conexões. Aliás, em Uma Cruzada Psicológica é o próprio autor quem nos incita a levar à prática o que ele sabiamente joga com o leitor, ou seja, «colocar o examinando frente a situações inéditas e observar as suas reacções» (p. 103). É este jogo entre a situação inédita e a construção de uma plausibilidade o que se desfruta através da leitura dos contos de Sorrentino, escritos com um sentido de humor extraordinário e um préstimo lúdico que não dispensa a inquietação: «A cruzada psicológica obriga a certos desvelos (como todas as cruzadas), exige duros sacrifícios (como todas as cruzadas), implica ver-se envolvido em sérias dificuldades (como todas as cruzadas). Mas, que significam estes inconvenientes, comparados com a deleitosa observação das reacções que a cruzada psicológica suscita?» (p. 106)

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