segunda-feira, 24 de junho de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #20


Quando ao chegar ontem a casa vos encontrei encantadas com o Dumbo de Tim Burton (n. 1958), lembrei-me que talvez estivesse na hora de vos falar do meu amigo ostra. Burton dispensa apresentações. Sabeis do assombro e da fantasia, ele irmana nos seus filmes a moral dos contos góticos e de horror com a estranha beleza de personagens tão insólitas quão inusitadamente emotivas. Tendo começado a trabalhar como animador nos estúdios da Walt Disney, detém ainda um extraordinário talento para o desenho. Se vos comovestes com O Estranho Mundo de Jack e A Noiva Cadáver, por certo ides encontrar no livro A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias motivos mais que aliciantes para uma leitura ao mesmo tempo divertida e pedagógica. Publicado pela Antígona, com tradução da Margarida Vale de Gato, este objecto singular foi originalmente editado em 1997. São estórias em verso, acompanhadas por ilustrações que certamente ides associar aos filmes do autor. Importa dizer que em nenhuma destas estórias a ilustração está presente como mero acompanhamento do texto, sendo frequentes os casos em que entre ambos se estabelece um diálogo complementar. Isso acontece mormente nos casos em que a estória é mínima, discorrendo ao ritmo de rimas que nunca decepcionam pela previsibilidade. Eis mais um exemplo em que criação poética e estória se confundem. Característica comum a todas os textos é o aberrante, o bizarro e a anormalidade enquanto matrizes literárias, aberrações que tanto podem dissimular como hiperbolizar as dimensões absurdas do afecto. Em muitas destas estórias é o amor que está em causa, o amor entoado pela desmesura da paixão, o amor a um filho ilegítimo ou anormal, o amor no seio familiar. Mas este amor acaba frequentemente minado pela inclusão de elementos extraordinários, como é o caso do pobre bebé ostra: com dez dedos nos pés e nas mãos e cabeça de ostra. Não vale a pena tecer considerações psicanalíticas sobre estas personagens, embora não seja displicente chamar atenção para o facto de todas elas nos enviarem para uma infância matizada pelo imaginário gótico da bruxaria. Temos os rapazes ostra, nódoa, robô, pesticida e torresmo, as raparigas vodu, lixo, com olhos fora de série e com muitos olhos, entre outros dignos representantes duma memória infantil fundada no espírito Halloween. Exemplo assaz curioso é, também pelo que tem de humorístico, o de Judite: «Para evitar uma queixa-crime, / chamemos-lhe apenas Judite / (ou “a rapariga que snifa cola / e que tem sinusite”). // Ora isso não a faz feliz: / é que quando se assoa / fica com o kleenex colado ao nariz». Devo porém alertar-vos, minhas filhas, para os perigos em que incorreis ao buscardes divertimento nestas bizarrias. Quem leve a vida demasiado a sério dificilmente encontrará aqui motivo de divertimento, obstáculo que, espero, não seja o vosso. Como sabeis, do riso motivado pela insensatez colhemos o ensinamento da verdade. Por mais que sejam os filtros com que tentamos disfarçar o hediondo, a deformação e o desfigurado, o bizarro e anómalo, por mais que sejam os filtros, repito, a verdade revelar-se-á tal qual é: inesperada e inconveniente como um corpo esventrado. Por debaixo da maquilhagem há sempre um esqueleto à espreita.

Cabeça de Melancia

Era uma vez um cabeça de melancia
que todo o dia se sentava absorto
desejando estar morto.

Mas com as coisas que desejamos
precisamos ter cautela.
O último som que ele ouviu
foi o de uma esborrachadela.

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