sexta-feira, 20 de abril de 2007

O GRANDE SILÊNCIO


O modo de vida preconizado pela Ordem dos Cartuxos foi pela primeira vez registado cinematograficamente neste O Grande Silêncio (2005). O facto, já de si fortíssimo do ponto de vista promocional, garantiu a Philip Gröning (n. 1959) a adesão pública e crítica, aguçada pela expectativa voyeurista sobre o que teria resultado de dezassete anos de espera para filmar o interior da Grande Chartreuse, mosteiro situado nos Alpes franceses. Gröning terá ali passado seis meses sob rígidas condições que proibiam entrevistas, comentários, música. Os 169 minutos de documentário retratam essa experiência de forma directa, sem artifícios técnicos de monta, com a austeridade imposta pelo próprio local. É impossível não nos deixarmos impressionar de alguma forma por aquele despojamento, um estado de reclusão voluntário que, supostamente, coloca os homens mais perto de Deus. O Grande Silêncio é apenas interrompido pela prática do canto gregoriano, excepcionalíssimos momentos de confraternização e convívio, leitura ritualista de passagens bíblicas e dogmas da Ordem. De resto, o realizador separa os afazeres diários, os rituais cumpridos à risca, com citações, por vezes repetidas, de textos que nos introduzem no género de fé subjacente a este itinerário da mente para Deus. Enclausurados como peixes num aquário, os frades do silêncio dedicam-se aos afazeres quotidianos: rapam o cabelo, distribuem refeições, alimentam animais, cortam lenha, tratam da horta, oram, costuram hábitos, tocam o sino, massajam-se, cumprem escrupulosamente os rituais aos quais juraram devoção, iniciam os noviços nos preceitos da Ordem. A rigidez e previsibilidade dos gestos contrasta com a dimensão do acaso e do inesperado que matiza a Natureza, tão bem filmada num outro documentário, há cinquenta anos, por Jacques-Yves Cousteau: O Mundo do Silêncio (1955). Enquanto o silêncio dos homens é um voto do que há de razão na fé, o silêncio das funduras marítimas é uma qualidade própria da Natureza. Entre o silêncio dos homens e o silêncio dos peixes há-de estar Deus algures, mesmo que a cada um de nós caiba mais esperar que ele nos encontre do que desesperar de encontrá-lo. A doutrina dirá o contrário, mas a doutrina, além de nunca ter sido boa conselheira, é péssimo exemplo. O historiador José Mattoso (n. 1933), monge beneditino durante vinte anos, explicava há dias numa entrevista publicada na revista Única, do jornal Expresso, que «o monaquismo, que começa com os eremitas do deserto no século IV, criou um movimento de ruptura com a sociedade. Se a pessoa que se recolhe ao isolamento concentra todas as suas energias e inteligência na procura de Deus de uma forma radical e acredita que Deus é aquele que preside à vida humana, Ele orientará e salvará a Humanidade. E portanto o que é bom para um poderá ser bom para todos, dado que o Bem alastra de uma maneira misteriosa». Continuando, dizia Mattoso: «No silêncio encontro a simplificação, a essência das coisas, a sua pureza e simplicidade». É esta fé no silêncio enquanto voz essencial que atrai no modo de vida mostrado pelo documentário de Philip Gröning, muito mais persuasivo que a eloquência dos catequistas e a tagarelice doutrinária dos pseudo-procuradores de Deus na Terra. Eu, que não acredito em Deus, sinto-me tentado à conversão, permitissem-me Internet no mosteiro e pândegas de fim-de-semana… Passe a ironia frouxa, o problema é que a existência de Deus, do meu ponto de vista, é tão provável quanto a possibilidade do silêncio. Mesmo que por este entendamos uma abdicação voluntária da própria natureza humana, o que, salvo raríssimas excepções, é só mais um modo de morrer como outro qualquer.

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