quinta-feira, 3 de maio de 2007

MELANCÓMICO

Não sei se é moda, mas pela segunda vez, num espaço de pouco mais que uma semana, calha-me ler um livro onde aparece um texto repetido. Entre os dois casos há uma coincidência: são livros que arrumam matéria inicialmente publicada em weblogs. Neste Melancómico acontece com uma Sinopse para um filme que, à excepção do nome da personagem, aparece integralmente repetida nas páginas 55 e 72. A gralha, chamemos-lhe assim, não pode passar despercebida, pois também ela é exemplificativa deste «tempo distraído» que Nuno Costa Santos (n. 1974) afirma ter pretendido reproduzir nos seus aforismos de pastelaria. Acaba por funcionar como uma metáfora, suponho que involuntária, desse mesmo tempo, um tempo de melancólicos humores e cómicas situações. Chamar a este um livro de aforismos é algo simplificador da profusão de conteúdos, menos superficiais do que possa parecer, nele impressos. O weblog que está na origem desta aventura, já o dissemos, deixa saudades, saudades essas que o livro apenas apazigua. Não porque seja mau – muito longe disso -, não porque esteja mal organizado - não está -, não porque não. É que o weblog mantinha um elo à actualidade que num livro sai sempre, inevitavelmente, traído. Acaba sendo esse o seu único "defeito", o de não ter resistido a uma série de textos que, por circunstâncias várias, deixarão de fazer qualquer sentido dentro em breve. O tempo é impiedoso e a sua impiedade revela-se sobretudo no sentido que usurpa ao que, tendo em tempos sido actual, é agora (será agora!) pouco mais que um fogaréu indistinto do passado. Imagino a minha filha de quatro anos a ler, daqui a uns seis anos, «O dia em que a Marta meteu baixa (e outras histórias) / Ok, Tele-seguro, fala o Tó Carlos das fotocópias» (p. 58). No mais, o Melancómico, de Nuno Costa Santos, é um muito curioso retrato da vida moderna, da vida urbana e do que nela há de mais picaresco, assim como desta «impotência mundial» que é o país em que vivemos. Destacam-se duas personagens das demais. Dona Bina e Márcio, com suas confissões, pensamentos e dúvidas existenciais, como que dão corpo, um corpo irónico, aos tormentos da contemporaneidade, às hipocrisias, isso mesmo, que nos arrumam a vidinha quotidianamente camuflada. Já as inquietações de Nuno Costa Santos revelam-se em aspectos fortemente simbólicos dos tempos hodiernos: as preocupações com o físico, o livro de recibos verdes, a filosofia do zapping, a sinusite e a praga dos inquéritos de rua, não definem, por si só, o que é a vida, mas dizem, por eles mesmos, muito do que é viver. E Portugal? Portugal sai perfeito no retrato, desde logo porque vem contornado numa profusão de neologismos em especial consonância com estes dias de “choque-tecnológico-identitário”. Já falámos do zapping, falemos do messenger, do gmail, da loja Select, da playstation, do action man e do man of the match, do light, do happening, do download e dos cocktails, do personal trainer ou, só para dar mais um exemplo, deste «Slogan para empresa dedicada ao desmancho de casamentos / Disconnecting People» (p. 38). Depois há também os media, a TVI, a SIC Mulher, a Sport TV, ou esse lugar de dar voz a um país que é o Fórum TSF. É o Portugal opinativo, o Portugal consumista invadido pelas montras do consumo internacional: IKEA, FNAC, Carrefour e, claro, o Lidl. Seja na forma de diálogo ou ao estilo de uma micronarrativa, o que ficará deste Melancómico é esse retrato (tendencioso) das tendências actuais, mesmo quando regista os modos de ser à laia de cúmulos: «Boas maneiras / Era tão bem educado que, sempre que um condutor lhe dava passagem na rua, mandava um cartão a agradecer» (p. 71). Referências a O’Neill, Celan, Ramón Gomes de la Serna, Goethe, Albert Cossery ou Raymond Carver, disfarçadas pela inclinação humorística, não permitem esquecer que este é um exercício limite desse balanceamento que é possível estabelecer entre o humor e a poesia. É literatura. Pois que outra coisa pode ser senão poesia este apontamento de Márcio?: «O que eu gostava era de ver um avião de papel a aterrar num porta-aviões» (p. 47). A edição é das Produções Fictícias e da Guerra e Paz. Se não me tivesse sido oferecido, eu tê-lo-ia comprado.

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