quarta-feira, 2 de maio de 2007

THE SHINING (1980)


Morreremos enregelados no labirinto das nossas próprias obsessões, acossados por fantasmas injustificáveis à luz da ciência mas tão vivos dentro de nós como cada memória que a nós chegou pelos atalhos da experiência. Ver também é sentir esses fantasmas, afirmar-lhes uma certa forma de existência, mesmo que apenas dentro do nosso corpo, receptáculo de estranhas anatomias, ponto cardial de um cruzamento com múltiplas ramificações. Como a família Torrance, em The Shining (1980), enclausurada numa instância turística erigida por cima de um cemitério índio – é preciso respeitar os mortos – seremos um dia vítimas da claustrofobia que o isolamento e a solidão activam. Bastava aguentar até Maio. Não é preciso chegar a uma casa abandonada, diálogos de pacotilha sobre espíritos maus também são completamente desnecessários, basta imaginarmo-nos sós, incomunicáveis, num qualquer lugar invernoso. Escuto o vento assobiar as suas melodias enquanto lavo a louça, ouço-o deslizando por entre os pilares das obras inacabadas quando vou bazar o lixo à rua, regresso a casa com ele a bater contra os vidros, a empurrar janelas e portas, chegando ao estrondo dos medos, das aflições. Não há qualquer imaginário terrorífico por detrás destes medos, destas aflições, não há um historial, uma qualquer explicação assente em vivências passadas – afinal, até somos fãs do suspense, quando não também do terror -, há apenas um corpo reagindo espontaneamente e involuntariamente aos reflexos mais imediatos, aos receios mais antigos. E daí o que provém? A loucura, a espaços a perturbação de quem se desorienta e depois a loucura, a perda em mãos das coordenadas que nos guiam num mundo constantemente ameaçador. O medo está em nos sentirmos ameaçados. No pior dos casos, a loucura está em não sabermos responder conscientemente às ameaças. Socorremo-nos, então, de mesinhas, orações, quando necessário das armas físicas que preencherão a lacuna agora evidenciada das outras. Em The Shining o papel da criança, como n’A Palavra de Dreyer, é o mais fundamental, porque é na criança que ainda se vislumbra a razão de uma resposta autêntica, ou, dito de outra forma, a única resposta possível perante o medo e a perturbação: a resposta do bem, do bem entendido não como contraponto ao mal ou ausência do mal, mas do bem que é o coração chamando a si o desnorte da razão. W. Somerset Maugham, nesse livro exemplar chamado Exame de Consciência, definiu o mal como «uma decepção dos nossos sentidos, e nada mais». Gostaria de aqui citar um longo parágrafo do autor de Servidão Humana, mas como não quero ser fastidioso, lembro apenas Jack Torrance, em The Shining, transfigurando-se no isolamento das suas obsessões, perseguido por fantasmas para os quais ainda não encontrou uma saída de emergência, batendo nas teclas a mesma frase repetida, saltando em câmara lenta do isolamento físico ao isolamento metafísico, conquanto vejamos neste último a dimensão alucinada do primeiro, efectuando esse percurso que vai da sobriedade de um gesto, da sobriedade de um desejo, à loucura das acções. Porque ele foi um pesadelo tornado realidade, fazendo-nos lembrar o essencial: morreremos todos enregelados no labirinto das nossas obsessões.

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