Vivemos num tempo estranho, um tempo de arrastadas saturações, um tempo sem respostas para perguntas outrora respondidas. Depois da morte de Deus, também o homem parece estar a morrer, muito lentamente, no colo das suas dúvidas eternas. O que havia de esperançoso na religião e, posteriormente, na ciência, deu azo a uma espécie de desertificação das ideias, dos ideais, dos dogmas, tornando-nos joguetes nas mãos do tempo. E o pior é que já nem em si próprio o homem ousa acreditar, tantos são os paradoxos por si gerados, tanta é a angústia promovida pela inexorabilidade desses mesmos paradoxos. Fala-se do fim da história e de pós-humanidade, relativiza-se a verdade ao mesmo tempo que se tropeça na objectivação dessa mesma relatividade, promovem-se valores adquiridos como se fossem fachos de luz ameaçados por ditaduras sub-reptícias, sejam elas a do consumo ou a da opinião, a do corpo ou a de uma democracia sem alternativas. Vivemos nesse tempo estranho de ir vivendo, de ir aguardando o fim, sem grandes programas, planos ou projectos que não sejam os de ir vivendo apenas, entre o comando da televisão e o volante do automóvel. A concentração da vida nas metrópoles desafia a humanidade nos limites da sua própria sobrevivência. O efeito é o de uma espécie de nova humanidade, mecanizada em função das dinâmicas do consumo. Utilizando a linguagem de Paulo Kellerman, direi que «limitamo-nos a esperar que o tempo vá passando, procuramos desesperadamente distracções» (p. 9), «os dias passam, iguais; e a nossa partilha silenciosa torna-se uma rotina» (p. 12), «conversamos freneticamente, com medo que o tempo passe, sem notarmos a sua passagem» (p. 22). O que disto resulta é uma constante monotonia, uma rotina, a impressão de que «viver é, apenas, repetir» (p. 31), um tédio sem saída, um tempo que se limita a passar sem nada trazer, um tempo vagaroso, enfadonho, sem qualquer entusiasmo, com «os gestos rotineiros» (p. 44), uma «doentia passividade» (p. 45) que tudo torna precário, inclusive os afectos. À literatura, como sabemos, não cabe tanto dar respostas como pintar retratos, ela é apenas um depositário de memórias, observações e experiências que esperamos possa servir de testemunho a quem se interesse, num futuro mais ou menos distante, pelo presente, pelo agora. E é esse agora que Paulo Kellerman retrata na sua mais recente colectânea de contos, intitulada Os Mundos Separados que Partilhamos, publicada em Fevereiro passado pela Deriva. Depois de Gastar Palavras, com o qual venceu o Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2005, Kellerman regressa com um conjunto de estórias escritas a partir da observação de quadros de Munch, Degas, Chagall, Eric Fischl, entre outros. Estes diálogos, apenas implícitos, não são tão evidentes quanto é a vontade de, quase sempre em pouco mais que três páginas, condensar um mal du siècle actualizado, partindo de perspectivações que mostram, de forma directa e limpa, as relações humanas na contemporaneidade. O narrador, que alterna entre o feminino e o masculino, mais do que contar uma estória, narra situações, momentos, reflexões contaminadas pelas sensações e pelas emoções mais íntimas. Daí que o tom seja intimista, por vezes repetitivo, como na música minimal repetitiva, sombreado pela melancolia, pelo tédio, pela solidão, pela frugalidade, pela rotina, pela monotonia. A dada altura, estes textos correm o risco de também eles resvalarem numa certa rotina, quebrada aqui e acolá por remates mais inesperados ou estruturas pouco usuais – como a de dividir as estórias em dois lados, à maneira de um velho disco de vinil. Num dos contos, um neto recorda a avó durante o seu funeral. Termina assim: «Não sei para que estou a escrever tudo isto. A minha avó não sabia ler» (p. 72). A mais recente proposta literária de Paulo Kellerman é feita destas hesitações, de dúvidas adensadas pelo cansaço que a monotonia da vida imprime a cada momento, é uma literatura sem riso, perdida nas ressonadas das personagens, é como um suspiro diante do vazio e da indiferença que contorna o olhar que o autor tem da actualidade. Importa porém lembrar que sendo um tédio, uma monotonia, uma repetição, a rotina da vida é ainda a única que temos como alternativa ao tédio, à monotonia e à repetição que a morte há-de ser. Se a literatura não consegue transcender essa condenação, outros meios haverá que a tornem menos lenta.
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