segunda-feira, 7 de maio de 2007

MANOEL DE OLIVEIRA


Num tempo de leituras políticas e de revisionismos para todos os gostos, quase sempre tingidos de particularismos que não atam nem desatam, opiniões pretensiosamente influentes ficam-se pelo jogo do pensamento a retalho. Os intelectuais, dizia-se ontem num programa de cultura, assemelham-se hoje a estrelas da música pop, com agendas preenchidíssimas. Que disponibilidade terão, estes intelectuais de agenda preenchidíssima, que disponibilidade terão para pensar? Mais tecnologia, menos tecnologia, certo é que sem ócio jamais haverá pensamento que nos valha. E se assim é com os intelectuais de primeira linha, que dizer dos opinantes dos campeonatos distritais? Penso nisto um dia depois do dia em que todas as mães são maravilhosas. Dia da mãe maravilha, porque as outras - por exemplo, aquela belga que matou os cinco filhos à facada - não têm direito a celebrações no dia da mãe. Dia da mãe? Mas de que mãe? Há dias um amigo dizia-me que assim como há um dia do livro também deveria haver um dia das telas, das tintas e dos pincéis. Coisas de amigo plástico. Eu digo mesmo que, por mim, deveria haver um dia do «há dias». A verdade é que andamos nesta roda de opiniões zarolhas e festejos inconsequentes, andamos nisto muito entretidos, baixamos as orelhas à altura dos ombros e cá vamos indo, haja saúde. A pergunta é: estamos contentes com o mundo que temos, podemos mudá-lo ou cruzamos os braços e enfiamos a carapuça da nossa sabedoria? Quem quiser que responda, de preferência as mães. Não me recordo de ter dado pelas mães em Aniki-Bóbó (1942), o primeiro filme de Manoel de Oliveira (n. 1908) que vi. Quando vi este filme ainda não sabia quem era Manoel de Oliveira, cineasta cuja gravidade se revela logo no facto de em muito o cinema português com ele se confundir. Não é raro as pessoas falarem de “cinema português”, assim como quem fala de “filosofia portuguesa”, circunscrevendo o conceito no campo dos aspectos estéticos que dão forma ao cinema de Manoel de Oliveira. Ora aí está mais um que tanta polémica tem gerado, tanta página de jornal tem preenchido, tanta sábia opinião tem inspirado. Enquanto tal, o homem lá vai na candura dos seus quase 100 a filmar que nem uma criança. Ou que nem uma mãe. À volta de homens assim há-de haver sempre aqueles que falam, falam, mas a gente não os vê a fazer nada… de jeito. Os que não gostam dizem que é lento, chato, longo; os que gostam aplaudem-lhe a poesia, a persistência, o domínio da voz. Há ainda aqueles que, sem declararem inclinações de gosto, apontam-lhe privilégios injustos num país que é costume apelidar de “subsidiodependente”. É importante perceber, meus amigos, que em alguns casos os privilégios conquistam-se e são mais que justos. Há quem não o entenda, mas mesmo esses dificilmente discordarão que o que torna o cinema de Manoel de Oliveira polémico é pois um leque de reacções que apenas em parte têm que ver com o cinema em si. A sua primeira longa-metragem é paradigmática da grandeza do seu cinema. Uma história aparentemente simples rapidamente se transforma numa complexa teia de situações, mais ou menos metafóricas, que transfiguram um tempo na exacta medida em que o testemunham e representam, sempre do ponto de vista de quem procura no presente as angústias do homem de sempre. Em plena segunda guerra mundial, de Oliveira filmou um drama infantil com claras projecções dos vícios adultos. Aniki-Bóbó tem, como numa tragédia grega, o dom de exemplificar os mais profundos dramas morais da humanidade, aqueles dramas universais, sem tempo nem lugar, que fazem de uma obra de arte uma obra sem tempo. A arte, creio, discutir-se-á sempre entre as balizas da perenidade e da efemeridade. O cinema de Manoel de Oliveira é perene. Na sua primeira ficção vislumbramos logo os mais íntimos paradoxos da consciência moral, o arrependimento e a culpa, a facilidade da condenação, a injustiça e a ingratidão, a coragem e a cobardia, a forma como cada um deles se interliga mostrando-nos que, tantas e tantas vezes, o que nos parece evidente é, afinal, tão obscuro quanto as águas turvas da psique humana. Uma cena: Pistarim chega atrasado à escola e é posto de castigo com umas orelhas de burro, distrai-se com um gato que aparece numa das janelas da sala de aula e é punido severamente. O gato foge, assustado, e é impossível não ver naquele gato uma metáfora da liberdade num tempo em que a mesma era severamente reprimida. Outra: Carlitos, o rapazito tímido que vive apaixonado por Teresinha, tenta fugir escondido num barco ancorado no cais. Quando é descoberto diz qualquer coisa como isto: «Era só para fugir daqui, para longe». Conclua cada um o que mais lhe aprouver. Há em Aniki-Bóbó uma dimensão de crítica social que não pode ser diminuída pelo final feliz, pela aparente ingenuidade que atravessa o argumento. O Estado Novo é ali retratado na máxima inscrita na sacola escolar - «segue sempre o bom caminho» (?) -, nas roupas remendadas, na pobreza, na repressão social, no medo que as próprias crianças sentiam dos guardas («Parece um guarda, sempre a desconfiar». – diz Eduardinho ao simpático dono da Loja das Tentações), nas noites escuras e sombrias… Não me recordo de por lá ter visto mães. Se aparecem, é sempre em plano secundário, a repreenderem os filhos. Mas isso não há-de querer dizer nada. Termino com uma confissão. Sábado passado, enquanto aguardava consulta, entretive-me a observar uma mãe adolescente no átrio do Hospital. Sentou o filho no parapeito de uma janela e acendeu um cigarro. Depois, enquanto fumava o cigarro, escrevia mensagens no telemóvel. A criança chorava, queria vir para o chão. A mãe, com as mãos ocupadas no cigarro e no telemóvel, mandou um berro para a criança: «Cala-te!» Há muitas mães assim no meu bairro, entretidas no cigarro e no SMS enquanto os putos se iniciam na vida com adolescentes que, provavelmente, também tiveram mães como elas. Ontem foi o dia da mãe, espero que de todas. Eu vou rever o Aniki-Bóbó / Passarinho Tótó / Berimbau, Cavaquinho / Salomão, Sacristão / Tu és Polícia, Tu és Ladrão.

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