segunda-feira, 11 de junho de 2007

LISBOETAS


Há coisa de dez anos, a Antígona – Editores Refractários publicou entre nós uma memorável antologia de textos extraídos da revista Internationale Situationniste. Para quem não esteja a par, a Internationale Situationniste foi um dos órgãos de divulgação do movimento situacionista, no qual sobressaíram nomes como os de Raul Vaneigem e Guy Debord, entre outros. Permitam-me que abra aqui um parêntesis algo despropositado, mas ultimamente tenho-me interrogado sobre quem serão os outros que tantas e tantas vezes acabam escondidos nas traseiras desse paredão aniquilador que é a enunciação «entre outros». Não flagelemos o cavalo morto. Só para dar alguns exemplos de alguns outros entre os quais também podiam constar Raul Vaneigem e Guy Debord, dependendo, obviamente, dos critérios de notoriedade aplicados por quem cita, mencionarei Asger Jorn, Alexander Trocchi e Mustapha Khayati, tudo nomes que deram corpo aos textos constantes na tal antologia publicada pela Antígona. Lembrei-me hoje deste volume por ter sido dos poucos que adquiri na Feira do Livro de Lisboa quando ainda era frequentador, nomeadamente quando vivi na capital (entre 1992 e 2000). Ao prefácio de Júlio Henriques, tradutor de serviço, usurpo, à minha maneira, uma possível explicação do que terá sido a organização revolucionária situacionista (1957-1972): resultando «da unificação de três agrupamentos de artistas em dissidência com a arte (o Comité Psicogeográfico de Londres, a Internacional Letrista e o Movimento por uma Bauhaus Imaginista)», a actividade dos situacionistas, permanentemente envolta numa “aura de escândalo”, destacou-se nos campos da crítica da arte e do urbanismo, assim como da subversão cinematográfica. Drogas, «atentados aos costumes», «iniciativas antimilitaristas», promoção da «destruição da Universidade», foram apenas métodos mais radicais ao serviço de uma crítica acérrima do capitalismo, da sociedade de consumo, das técnicas de manipulação das massas, nomeadamente o discurso persuasivo, contagiante e contaminador da publicidade e da propaganda, assim como uma denúncia não menos acutilante da intelligentsia instalada nos laboratórios universitários ao serviço dos arquitectos do poder. Convém, no entanto, citar com mais precisão Júlio Henriques: «politicamente anarquista, segundo o princípio de que não há melhor governo do que governo nenhum, promotora dos Conselhos Operários e da autogestão generalizada, a I.S. fundamentou-se, no entanto, numa parte da obra de Marx, nomeadamente na relativa ao feiticismo da mercadoria e à alienação central dela decorrente». A prática extinção deste tipo de pensamento, que hoje tende a ser visto como utópico, megalómano, talvez incompatível com si mesmo, dever-se-á, em parte, ao facto de ser um pensamento em contradição com a natureza ambígua do ser humano. Ao mesmo tempo tribal e egoísta, a humanidade parece organizar-se em sistemas de preservação dessa mesma ambiguidade. Tudo o que a ponha em causa, quer pela radicalização de um dos pólos ou pela tentativa de assimilação de um no outro, está condenado, à partida, mais que não seja por aquela desconfiança que impede o desabrochar da floresta temendo a possibilidade de um incêndio. Piaget era capaz de não estar longe da verdade quando referiu ser a adaptação a essência do funcionamento intelectual, o que justifica, desde logo, o célebre dito: quem está mal, mude-se. A questão é que ontem, mais uma vez, eu estive mal. Mas não me parece que, apesar de ter estado mal, seja eu quem deva mudar. Estive mal porque revi o documentário de Sérgio Tréfaut pertinentemente intitulado de Lisboetas. Toda a gente sabe que aqueles lisboetas visados no documentário são, digamos assim, os filhos de uma imigração que é toda ela vítima do monstro que os pobres situacionistas tentaram combater, o monstro de uma sociedade alicerçada numa técnica de respiração que se reparte entre a capacidade de produzir tendo em vista o desejo de consumir. Eu não sei, muito sinceramente, se o mundo que os situacionistas propunham – será que propunham algum mundo? – era bom, mas estou convencido que o mundo que eles quiseram combater é péssimo. Mas eu há muito que deixei de ir com frequência à Feira do Livro de Lisboa, embora de vez em quando ainda passe pelo Martim Moniz.

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