quarta-feira, 20 de junho de 2007

SIÃO

Há pouco mais de vinte anos, em Fevereiro de 1987, os poetas Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião organizaram, anotaram e publicaram, pela Frenesi, uma antologia de poesia denominada Sião. Nome de origem bíblica, Sião, posteriormente chamada de cidade de David, foi a fortaleza conquistada pelo rei David aos jebuseus. «Para a conquistar, David disse aos seus homens: “Quem quiser atacar os jebuseus deve entrar pelo canal da água e matar esses cegos e coxos que eu odeio”. Daqui é que nasceu o ditado: “Nem os cegos nem os coxos podem entrar no templo”.» Setenta foram os poetas de boa visão e nada mancos com direito a figurar nesta cidade frenética, organizada a partir de premissas tão questionáveis como quaisquer outras. Por recusa dos próprios, não foram reproduzidos poemas de Mário Cesariny, João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães, embora notas de entrada nos dêem conta do facto. Alexandre Melo, autor do prólogo, dizia ter ficado de fora «o lirismo piegas do sentimento, a militância higiénica do desejo, a estética lambiada do erotismo», tendo-se optado antes por objectos cortantes, por uma «poética da criminalidade», portanto: «rua, noite, carne e crime». À época já publicavam Armando Silva Carvalho (estreado em 1965), Jaime Rocha (primeiro livro de poesia em 1970), João Camilo (apareceu em 1975), José Emílio-Nelson (primeiro volume é de 1979), Amadeu Baptista (3 livros anteriores a 1987), entre outros que, não tendo penetrado na fortaleza, lá foram, a pouco e pouco, conquistando o seu lugar na cidade de todos os crimes. Quem leia Antecedentes Criminais, antologia de Amadeu Baptista recentemente editada, percebe porque lembro estes nomes quando releio naquele prólogo a apologia de «uma poética da “criminalidade” – esse outro modo de recusa e da transcendência». Em 1987, haviam publicado na Frenesi poetas como Isabel de Sá, Jorge Fallorca, Emanuel Jorge Botelho, Álvaro Lapa, Jorge Aguiar Oliveira, Helder Moura Pereira, Manuel Fernando Gonçalves, Adília Lopes - todos eles incluídos na Sião. O que provavelmente estava em causa, mais do que antologiar a poesia portuguesa – tarefa, de resto, raramente bem-aventurada -, era reunir num só volume as brasas que abrasassem a ca(u)sa Frenesi, uma ca(u)sa tão cáustica quanto a soda, uma ca(u)sa heterodoxa, libertadora, fiel à vertigem dos poetas que ousaram situar-se nessa thin red line que separa a loucura, o excesso e o sonho da tepidez dos litorais primaveris. É certo que o tempo passa e, com o passar do tempo, sobre o corpo recaem os excessos da poesia. Alguns dos nomes então seleccionados sucumbiram ainda antes de haverem experimentado o doce fel dos poemas publicados, outros hão-de ter abandonado o mundo do crime, convertendo-se à estabilidade das carreiras policiais, mas, no cômputo geral, o que hoje nos chega não pode dizer-se que nos chegue a cheirar a mofo. Organizada cronologicamente, a partir da data de nascimento dos poetas representados, Sião abre com um suicida - Antero de Quental (n. 1842 – m. 1891) - e encerra com inéditos de Fernando Luís (Sampaio) (n. 1960) – reaparecido em 2005 na Assírio & Alvim. Acompanhados de breves notas biográficas, os textos seleccionados, ora em verso, ora em prosa, ora claramente narrativos, destacam-se invariavelmente pela afirmação de uma ruptura com os moldes poéticos mais convencionais. É interessante notar que poetas como Fátima Maldonado, Emanuel Jorge Botelho ou José Carlos Soares, têm aparecido na revista Telhados de Vidro. Sobre um livro esquecido de José Amaro Dionísio, escreveu, na mesma revista, o poeta Manuel de Freitas (que, de resto, também já publicou pela Frenesi). Curiosa foi a inclusão de Rui Reininho, autor de um livro de poemas saído em 1983, mas mais conhecido como vocalista dos GNR. Talvez merecesse hoje outra divulgação a poesia do desconhecido Eduardo A. S. Guerreiro, mais um «suicidado da sociedade», assim como a de alguns perdidos que aí se mostraram, entre outros, com a publicação de inéditos: Ana Curado, José Mira, António S. Ribeiro.

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