sexta-feira, 22 de junho de 2007

O DIA DO DESESPERO


Li algures que Manoel de Oliveira filmou O Dia do Desespero, em 1992, enquanto aguardava que Agustina Bessa-Luís terminasse a história de Vale Abraão. Aclamado pela crítica, que o considerou um dos melhores filmes de Oliveira, o filme acabou sendo encarado, pelo próprio realizador, como uma obra menor. Trata-se, sem dúvida, de um filme curto, mas não necessariamente menor, até porque nos coloca, com inquestionável inteligência e sentido lúdico, perante uma das questões mais recorrentes na história do cinema: a fronteira que separa o documentário da obra de ficção. Filme austero e despojado, O Dia do Desespero percorre os últimos dias do escritor português Camilo Castelo Branco (n. 1825 – m. 1890), a partir de um conjunto de cartas por este escritas já no limite da sua atormentada existência. É do conhecimento geral que Camilo acabou pondo termo à sua vida, após lhe haver sido diagnosticada a irreversibilidade da cegueira que o atingira na sequência do contraimento de sífilis. Manoel de Oliveira serve-se das cartas do polémico escritor português, principalmente à sua filha Bernardina Amélia, fruto de uma relação intempestiva que levou Camilo à prisão acusado de rapto e desvio de dinheiro, para recriar os seus últimos dias na companhia de Ana Augusta Plácido. Antes destas relações, tinha Camilo casado uma vez, com Joaquina Pereira de França, de quem havia tido uma filha, ambas acabando por falecer pouco tempo depois do boémio escritor as ter abandonado. As relações amorosas do autor de Amor de Perdição davam, por si só, assunto suficiente para a realização de uma grande tragédia, mas não é esse o pano de fundo d’O Dia do Desespero, embora a relação com a femme fatale Ana Plácido, com quem manteve ligação adulterina, levando-o pela segunda vez à prisão, acabe bastante evidenciada no filme. De resto, Ana Plácido, representada por Teresa Madruga, ocupa um papel central nesta história. Isto deve-se ao facto de Ana Plácido ter sido o derradeiro testemunho de um desespero impossível de representar. Manoel de Oliveira não quis que o seu filme fosse visto como um documentário, mas a verdade é que a forma como o mesmo está construído torna inevitável que se levante a tal questão da fronteira entre o documentário e a ficção. Todo ele filmado na Quinta de São Miguel de Ceide, para onde Camilo e Ana Plácido se mudaram em 1864, tendo aí morrido o escritor a 1 de Junho de 1890, O Dia do Desespero é um dia que remete para toda uma vida, para toda uma obra, alicerçada numa ambígua relação com a morte e com o tempo. São lidos excertos das cartas de Camilo, mas também breves trechos de alguns episódios históricos da obra camiliana, sobretudo trechos onde a realidade do escritor se confunde com a dimensão ficcional do romance. Os actores começam por apresentar-se enquanto tal, percorrem os espaços da casa, aparecem alternadamente enquadrados nos papéis que representam e despidos desses mesmos papéis, como narradores actuais de um tempo passado que ali, nas paredes daquela casa, encontra-se inscrito mas não se pode reconstituir. Essa reconstituição não passa disso mesmo, de uma tentativa de recriação da realidade através de um artefacto ficcional. A interdependência entre o real e a ficção está, desta forma, originalmente demonstrada, ao mesmo tempo que desmonta as próprias fronteiras impostas ao cinema enquanto documentação da realidade. O filme de Oliveira não escapa a esse simulacro, não escapa ao fantasma que se sobrepõe à verdade por detrás da história, dissimulado no que há de nosso na reconstituição de um tempo que não foi o nosso. «Temos o que resta da memória». - dizem Mário Barroso e Teresa Madruga enquanto especulam sobre a personalidade de Camilo a partir da interpretação de dois quadros expostos nas paredes de uma das divisões da casa. «Não chega». - assevera, se bem me lembro, Teresa Madruga. Era preciso perguntar a Camilo o que via ele naquelas obras, fosse isso possível. O que há de verdade absoluta numa narrativa é, pois então, somente a consciência dessa fronteira que separa as águas entre o que aconteceu (de facto) e o que pode, à luz dos relatos, ser representado num tempo subsequente (aos factos). Daí a confusão voluntariamente exercida sobre o espectador entre aquele que representa e o que está a ser representado. Mais do que um filme-documentário sobre Camilo Castelo Branco, este é um ensaio sobre a ficção enquanto simulacro da realidade, um ensaio que é também, na mesma medida, uma prova acerca da inexorabilidade do tempo.

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